O espectaculo de huma tal conducta, agradavel a Deos, he a escola da verdadeira Philosophia, ou antes he ella mesma dando a lição mais importante para os homens, aos quaes estes grandes, e admiraveis exemplos devem servir de modelo. Luis de Camões nos presenta, mais do que nenhum outro, hum destes grandes exemplares. Depois de manifestar nas suas diversas obras o maior engenho, e de nos legar no seu immortal Poema o amor da patria, e das mais heroicas virtudes, deixou-nos em todas as acções da sua vida hum monumento da grandeza e elevação da sua alma, que pode e deve servir, não só de instrucção, mas de emulação. Superior á ingratidão da sua patria que servira, e illustrara, conservou constantemente o mesmo amor por ella, e a inteireza do seu nobre coração, a pezar da mais cruel infelicidade. Propondo-me hoje escrever a sua vida, bem quizera poder dar aos meus leitores noticias mais circunstanciadas della; mas he forçoso que elles se contentem com o pouco que nos transmittiram os seus contemporaneos Diogo do Couto, e Manoel Correa, e com o mais que Pedro de Mariz, Manoel Severim de Faria, e Manoel de Faria e Sousa, trinta ou quarenta annos depois, nos deram por averiguado. Deviam certo ou considerar esta materia de menos importancia, ou por nella bem pouca diligencia e applicação, pois estão longe de satisfazer a nossa sequiosa curiosidade, e de se eximir da culpa de deixarem confusos e escuros alguns dos factos que referem. radavel a ou antes * para os S exem nenhum de ma o, e de patria. das as ■ e ele so de atidao Cons za do elici zera tan tem m 10 Portanto o meu trabalho foi de extrahir estas noticias dos authores acima mencionados, tendo tido o maior cuidado em confronta-los, e escolher somente o que era verosimil, para o que muito me serviram huma lição a mais attenta, e hum miudo exame das obras de Camões, aonde elle toca alguns successos da sua vida, desvelando-me assim a fazer melhor conhecer o caracter e conducta deste varão, que tanto honra a humanidade ). A familia dos Camoes he originaria de Galiza. O seu solar era o castello de Camões, junto do cabo Finisterre, donde deriva o seu appellido. Vasco Pires de Camões foi o primeiro della que passou a Portugal em 1370, quando seguio as partes do Senhor D. Fernando contra ElRei D. Henrique de Castella. A julgar pela grandeza da doação que o Soberano Portuguez lhe fez, e os cargos que lhe confiou, devia ser a acquisição deste Fidalgo considerada de grande importancia, e a sua pessoa tida em grande valia (2). Casou em Portugal com a filha de Gonçalo Tenreiro, Capitão-mór das Armadas, de quem teve, Gonçalo Vaz de Camões, João Vaz de Camões (3), Constança Pires de Camoes. Do primogenito descendem varias familias das mais illustres do Reino. Da alliança que fez o segundo com Ignez Gomez da Silva procedeo Antonio Vaz de Camoes; o qual casou com Guiomar Vaz da Gama, de quem teve Simão Vaz de Camões. Este, e Anna de Macedo, (dos Macedos de Santarem) foram os progenitores do grande Luis de Camões. Refiro esta ascendencia genealogica para mostrar que a fortuna até o tinha favorecido, fazendo-o nascer em huma classe, que lhe proporcionava grandes ventagens, e não para illustrar o nosso Poeta; pois he elle quem pelo seu engenho e virtudes illustrou mais a sua familia, e fez o seu appellido conhecido na Europa, quando aliás não teria passado alem das fronteiras de Portugal. Seus Pais não deviam ser ricos, porque provinham de hum ramo segundo; e he notorio que os cadetes em Portugal são geralmente pouco avantajados: mas tanto maiores elogios, e agradecimentos merecem de nós, pelo cuidado que tiveram em cultivar o grande engenho natural do seu filho. Nasceo este no anno de 1525, em Lisboa, segundo a melhor opinião, fundada nos registros da Casa da India, que Manoel de Faria descobrio, em que se acham notados a sua idade, e assentamento de praça (4). Sabemos que passada a sua primeira educação, elle foi (dizem) da idade de doze annos, continuar os seus estudos na Universidade, que ElRei D. Joao III tinha transferido, havia pouco tempo, de Lisboa para Coimbra, convidando para professar nella alguns dos nacionaés, e estrangeiros mais famosos então no orbe litterario. Dos progressos que elle fez naquella escola, podemos julgar pelos conhecimentos e erudição que vemos nas suas obras, e pela superioridade com que brilhou desde logo, e que conservou sempre entre todos os seus contemporaneos. Já nessa juvenil idade, Luis de Camões se dava á poesia, e nos seus primeiros ensaios mostrava o talento poetico de que era dotado, e a sua applicação aos bons authores e modelos. Acabados os seus estudos, na idade de 18 ou 20 annos, voltou á Corte, aonde residiam seus pais, e onde os fidalgos moços, segundo os costumes daquelle tempo, vinham mostrar-se para aperfeiçoar a sua educação, e passar dalli ás duas escolas militares de Africa e Asia. Dotado de huma presença agradavel, de hum raro engenho, de huma imaginação romantica, de hum coração sensivel e ardente, com hum espirito ornado de quantas ventagens a natureza e a educação podem dar, vio-se procurado, e estimado por todos aquelles que cultivavam as Lettras. Mas, como elle diz, Quem pode livrar-se por ventura Dos laços que Amor arma brandamente? Alli vio D. Catharina de Atayde, composto de graças e de belleza, se devemos crer a descripção encantadora do Poeta 6), e concebeo por ella o mais ardente amor, como o seu coração era capaz de senti-lo, e como os seus versos mostram, conservando o fogo da paixão que os dictou. Era esta senhora Dama do Paço; e a julgar pelo seu appellido, parenta de D. Antonio de Atayde, primeiro Conde da Castanheira, poderoso valido do Senhor D. Joao III. Estes amores inspiraram a Camões a maior parte das suas primeiras poesias, e foram a primeira causa dos seus infortunios. Posto que elle fosse igual em nascimento a D. Catha rina de Atayde, como lhe faltavam os bens da fortuna, pode-se mui bem conjecturar, que a familia desta senhora procurou prevenir huma união que julgava desavantajosa, e aggravando huma falta desculpavel, reclamou sobre esta o rigor das leis, que eram naquelle tempo mui severas contra os que entretinham amores no Paço. Por este motivo, o unico de que tenhamos noticia certa, foi desterrado da Corte para o Ribatejo, o que elle confirma, e de que se queixa na elegia terceira em que se compara`a Ovidio, lamentando as penas da ausencia, e tao austero castigo (7). Neste retiro procurou Camoes hum allivio ás suas magoas no estudo, e na poesia. Alli compoz grande parte das suas rimas, provavelmente as suas comedias, e concebeo o plano do seu Poema, em o qual, julga Manoel de Faria, que elle começou a occupar-se muito cedo. Ignora-se o tempo que durou este degredo; quando voltou delle a Lisboa, e se embarcou para militar em Africa, e até o motivo desta segunda sahida da Corte. Talvez por não comprometter mais a sua Dama, ou por experimentar novos contratempos, tomou huma resolução propria do seu brioso coração; e entrando na carreira e serviço militar, quiz, como verdadeiro cavalleiro, participar da gloria que os Portuguezes então adquiriam em todas as partes do mundo. A minha opinião he, que elle intentou primeiro passar á India, e que para esse fim se alistou em 1550, mas |