rio e clarabóia. O empochar, por embolsar, já se vai vulgarizando, e não tardará que digamos poche em vez de bolsa. Mas isto ainda não é tudo; o pior, talvez, é a audácia com que certos escritores estão empregando palavras de sua pura invenção, que êles sós compreendem, e que precisam de ser convenientemente anotadas, para que as possamos traduzir em vulgar. Por êste caminho não haverá um dicionário português: haverá tantos dicionários, quantos forem os escritores. O mal- digamo-lo em verdade - não é exclusivamente nosso; lá fora, e até em algumas nações bem cultas, está sucedendo o mesmo, pôsto-que em grau menor e menos escandaloso. Dá-se lá também um fenómeno que julgávamos peculiar nosso. Nós empregamos hoje bayadera e fetiche, tirados directamente do francês, quando foram os Franceses que vieram buscar à nossa língua bailadeira e feitiço. Os Franceses também usam hoje o inglesismo budget, que não é senão a corrução de bougette, velha palavra que os Normandos introduziram em Inglaterra, no tempo da conquista. Infelizmente, nós, que inventamos tanta palavra, não dotamos o vocabulário técnico com nenhum têrmo de sciências, artes ou indústrias. Pois era aqui que o nosso patriotismo rejubilaria com o espírito inventivo português. Para nós uma língua é o espelho fiel em que se reflecte o «estado da alma» de um povo. A língua portuguesa traduz bem o nosso estado de incerteza, de flutuação, de falta de iniciativa. Domina-nos o quer que seja de bisantinismo; e em-quanto não se efectuar uma forte renovação moral, a nossa língua há-de continuar a exprimir um pronunciado sintoma de decadência. (De um artigo publicado no Diário de Noticias, de Lisboa, 14 de Junho de 1897.) XXXII N É Teixeira de Pascoaes POESIA E LÍNGUA DO POVO A Poesia é que melhor aparece a alma dum Povo, no que ela tem de mais profundo e misterioso. por intermédio dos poetas que o génio popular se vai definindo em figura viva, cada vez mais perfeita. O poeta é o escultor espiritual duma Pátria, o revelador-criador do seu carácter, em mármore eterno de harmonia. A Poesia é a mãe do Carácter; por isso, devemos considerar divina a missão dos poetas, quando não mintam ao seu destino sublime. Se a Sciência é a realidade das cousas fora de nós, a Poesia é a sua realidade dentro em nós. A Sciência constata e vê. A Poesia vê também; mas os seus olhos iluminam, transcendentalizam a cousa contemplada, elevam o real ao ideal. A Poesia é criadora, e as suas criações ficam a viver, a pertencer à Natureza, que, nelas, se excede, e acrescenta às suas formas de alma e beleza - o Reino Espiritual. A Poesia converte a matéria em espírito; e, por isso, ela intervém na criação da alma pátria; definindo e sublimando as suas qualidades, fixando-as no tempo e no espaço, pela beleza que as torna universais e duradouras. A obra mais representativa da Raça, por mais espontânea, é o Cancioneiro Popular. Nêle transparece encantadoramente a fusão dos contrastes: dor e alegria, vida e morte, espírito e matéria, e a própria divinização da Saüdade: De qualquer sorte que existas, O Cancioneiro Popular não é apenas uma obra satírica e amorosa, como tem sido considerado: é, antes de tudo, uma obra religiosa, anunciando o nosso misticismo panteïsta: Ó sol, torna-te amanhã, Eu sou filho das estrelas, Meu coração é um rio Cheio de águas, mete mêdo! Rega-se o teu arvoredo! Os versos da última quadra, duma infinita grandeza cósmica, difícil de encontrar nos maiores poetas do mundo, traduzem a paixão do amor, sulcando o coração humano como um rio caudaloso. ¡A água do coração, identificada com a torrente invernosa e regando os arvoredos! O amor e a dor humana, disputando às nuvens a graça de fecundar e florir a terra! E o amor saudoso ou panteïsta da alma popular, cantando a Natureza e a Mulher. VOL. II 16 |