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nha aberta para o estômago para vermos o que por lá vai!

E como nós ríssemos com a história, que, naquele ambiente calmo, nos pareceu extraída das páginas das Pupilas, a sr.a D. Emília acrescentou, em defesa do padrinho da casa: -Mas o padre Eura não se calou. Foi-lhe dizendo:

- Por isso, quando vou prestar os socorros espirituais a essa pobre gente, e agora levam-me dia e noite, não quero saber dos cuidados que vocês aconselham. E nem por isso a doença veio ter comigo!

A bondosa senhora epilogou o diálogo de uma maneira diversa da de Júlio Denis. Êste deixa o velho clínico sempre em melhor posição. Amor de classe, simpatia pelo colega, coisas raras nos tempos que vão correndo, mas possivelmente vulgares em 1863 e, sobretudo, naturais em quem nunca pensou a sério em cuidar de doentes.

A conversa seguiu ainda por muito tempo neste campo. O Cura Dias surgia aos nossos olhos como o modêlo que serviu a Júlio Denis para aquele Reitor que atravessa todo o romance como uma encarnação da Providência. Deixemos, porém, para momento mais oportuno o que temos a dizer a êste respeito.

A tarde declinára rápida. Uma tonalidade cendrada enchia a sala. A silhueta da nossa infor

madora, que se colocára na sombra, além da janela que uma cortina velava, diluira-se em imprecisões de linhas a que o seu vestido escuro dava ainda um tom mais apagado.

Resolvemo-nos. Tínha-nos contado o dr. José de Almeida que uma scena real de amores se passára entre Júlio Denis e a Margarida. Coisa fugaz, por certo. Ao estudarmos Júlio Denis sob êsse aspecto, traremos à colacção o que os seus biógrafos referem e, sobretudo, o que êle diz da sua inconstância amorosa. Mas o que fôra um fogo de momento no romancista perdurou na alma delicada da Guida, das Pupilas. Ousámos inquirir.

Sim! Minha mãe, três dias antes de falecer, chamou-me para me pedir que fôsse à gavêta do armário que está lá dentro e deitasse ao lume um embrulho de cartas e um retrato de Júlio Denis publicado num almanaque de lembranças.

E acrescentou:

«Junto está um coração, uma lembrança. Essa podes guardá-la para ti.»

-Naquele momento não hesitei. Fui à gavêta, tirei o pequeno embrulho e deitei-o à fogueira. Telvez não devesse fazê-lo; mas era um pedido de minha mãe e naquela hora... Obedeci.

E, levantando-se, foi lá dentro buscar o cordão que enfeixava as cartas e a prendazita: um

coração de madre-pérola rendilhado, com letras gravadas em ouro, ao redor. Tomámo-lo com veneração. As letras estavam bastante sumidas, mas conseguímos ler a legenda que circunda a reliquia. Diz assim:

Venceste meu coração

Com subtil arte de amor (1).

Devemos informar o leitor de que, ao tempo, havia uma indústria de ourivesaria bastante desenvolvida em Ovar, indústria de objectos baratos, daqueles que ainda hoje fazem as delicias das camponesas nas feiras e mercados do Norte.

Foi ali, por certo, que Júlio Denis o comprou para oferecer à Margarida do romance, que era, nesse tempo, em Ovar, D. Ana Simões, filha de Tomé Simões de Rèsende, como adiante se verá.

As cartas tinham sido escritas no papel fino e regrado da época, dobrado em quatro, e estavam dentro dos sobrescritos pequenos que tôda a gente de há quarenta anos conheceu. Pelo que nos disse a nossa informadora, deviam ser mais de dez cartas. Preciosos documen

(1) A grafia é incorrecta. O primeiro verso é assim escrito: «Venseste Meu Corasão».

tos que o fogo levou, mas que, mesmo existindo, não sei se ousariamos aproveitar. Foi melhor assim! Pode ficar uma dúvida, mas outros elementos mostram à saciedade que o Daniel do romance é o próprio Júlio Denis e que a Guida é D. Ana Simões que, com o padre Cura, seu padrinho, mestre de famílias, como nos informou sua filha, alcançara uma ilustração um pouco fora do vulgar no seu meio e no seu tempo. Foi sempre amiga de ler e de se instruir. Mesmo já velhinha, então muito dada a leituras religiosas, discutia com o dr. José de Almeida assuntos bíblicos e citava passagens inteiras dos seus autores predilectos.

Em Março de 1922, já então juntando elementos para êste trabalho, recebemos uma carta dêste nosso amigo, a anunciar-nos o facto que viemos a ouvir da própria filha da Guida do romance, e que merece ser aqui trasladada:

«Meu caro Egas Moniz

«Se desejas ver a prenda de namorado dada. por Daniel (Júlio Denis) a uma das Pupilas, sua namorada, vem aqui na quinta-feira depois do teu almôço. Vês aquela relíquia e ouves testemunhas comprovativas de que Júlio Denis aqui arquitectou e escreveu as suas Pupilas. Até há poucos anos a namorada de Daniel (Jú

lio Denis) conservou o retrato e umas cartas dêste como uma coisa íntima. Ao morrer pediu à filha, que ainda vive, que queimasse aquelas cartas e inutilizasse aquele retrato! Não queria que isto fôsse divulgado! Eram coisas do seu coração antes de casar; e, assim, com ela deviam desaparecer. Tudo, na verdade, desapareceu, menos uma prenda que estava junta!

«Essa «Pupila» tratou-me como se eu fôsse seu filho. Como teria evitado o desaparecimento daquelas jóias se me revelasse o que tão no íntimo pudor de mulher guardou até morrer, viúva e velhinha!»

O fogo purificador levou para sempre um pouco daquela alma de rapaz que sabia semear afeições, sem lhes dar vulto, mas que ficavam, por vezes, vincadas para sempre nas almas delicadas em que floriram.

Foi o que sucedeu com as que nasceram na Margarida do romance, e tanto que atravessou a sua existência ligada às palavras que êle lhe dissera e, por certo e mais ainda aos .lindos dizeres das cartas que lhe dirigiu e que guardou, a vida inteira, em sítio recatado, que ninguém ousou devassar. Nem as filhas souberam nunca das recordações que, pouco antes de morrer, entregou ao esquecimento da fogueira!

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