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O manuscrito deve ser a dissertação sobre que, em seguida, explanando o assunto, fêz considerações em forma de lição. O ponto era vago, impreciso e fundamentalmente teórico. Nos apontamentos que temos à mão há a duplicação das duas primeiras fôlhas, uma delas bastante emendada. As outras duas, a que se seguem mais páginas, fazem parte da dissertação que, segundo o programa de concursos daquela época, devia ser, em parte, lida ao júri. No sobrescrito onde encontrámos êste documento da vida médica do grande romancista, estão escritas estas palavras: «Dissertação sobre artes, sciências, fisiologia, etc.» (1).

Gomes Coelho devia ter-se visto um pouco embaraçado para fazer a sua prelecção. Serviu-se para isso das suas qualidades de escritor, que pareciam ser ali mais chamadas a auxiliá-lo do que pròpriamente os seus estudos. médicos. Por isso divagou pelas regiões filosóficas e entrou em matéria pedagógica como parecia necessário ao encadeamento dos assuntos sôbre que era solicitada a sua opinião:

«Desde o primeiro momento, escreveu Gomes Coelho da sua aparição no globo, o ho

(1) Deve ser letra de seu sobrinho, o almirante Guilherme Gomes Coelho.

mem, pelo uso forçado dos seus sentidos, realizou as suas primeiras observações; a inteligência, com a sua actividade espontânea ou comunicada, formou os primeiros juízos; as sensações internas revelaram-lhe necessidades próprias que o instinto, irresistível e cego, procurou satisfazer. Assim o primeiro homem pode dizer-se o primeiro observador, o primeiro filósofo e o primeiro artista.

«Contudo, forçoso é confessá-lo, só a vaidosa pretenção dos que julgam dever estabelecer a importância hierárquica das sciências na antiguidade da sua origem, é que pode fazer ver nestas noções irregulares e incompletas, nestes . actos incoerentes e irreflectidos, a primeira fase histórica de qualquer sciència ou arte.

«Quando as observações se multiplicaram, quando o espírito adquiriu nas suas operações a firmeza e vigor que dá um exercício continuado, uma verdadeira educação, é que os factos adquiridos se catalogaram, e a inteligência pôde reconhecer-lhes a filiação que os prendia, formular leis, e tentar descobrir-lhes a causalidade, construir emfim uma disposição metódica de conhecimentos, uma sciência que é, segundo d'Alembert, a parte inteiramente especulativa dos conhecimentos humanos, a qual se limita a observar um objecto qualquer, a contemplar as suas propriedades. Bola.

«Por outro lado as artes, filhas do instinto,

incitado pela necessidade de evitar

dor e pro

curar o prazer, receberam cedo a influência dêste desenvolvimento adquirido pela razão e vivificado pela sciência e entraram numa nova fase da sua existência.

«Esta influência das sciências sobre as artes era de prever. A sciência é um esforço para a aquisição da verdade. As Artes um esfôrço para a aquisição do útil ou do agradável. Dão-nos processos práticos para as operações do espírito e do corpo (artes liberais ou mecânicas); e é evidente que não pode haver certeza nestas operações, sem que um conhecimento exacto dos objectos sôbre que elas recaem, as preceda. Este conhecimento dão-no-lo as sciências. As artes, por seu lado, pagaram de sobra êstes serviços recebidos, rasgando novos horizontes às conquistas do espírito, multiplicando, por seus instrumentos, o alcance dos sentidos. E assim coadjuvadas umas e outras, progrediram, multiplicaram-se a ponto de romperem os laços sintéticos com que a inteligência as pretendera abranger. Esta aproximação da arte e da sciência foi fecundissima em resultados,

O papel. passivo do observador, que escutava a natureza, transformou-se, no do experimentador que a interroga...n

Em seguida a outras considerações gerais, tôdas mais ou menos, embuïdas em doutrinas

dos enciclopedistas, Gomes Coelho desce um pouco da atmosfera filosófica em que se colocou, de acordo com a extravagância do tema que lhe coube em sorte, para se ocupar pròpriamente da fisiologia.

Calculamos o esforço empregado pelo candidato para ligar os diferentes capítulos do seu ponto. Vê-se isso do rascunho que temos pre

sente.

Continuando, diz:

«Nesta distribuição fundamental dos conhecimentos, que lugar cabe à Fisiologia? É a primeira questão proposta à nossa solução.

«A fisiologia é uma sciència. É um complexo de noções sistematizadas; é um corpo doutri nal».

É sobre este ponto que disserta mais largamente, encarando, ao mesmo tempo, o aspecto filosófico da divisão e subdivisão das sciências; e, inclinando-se para as classificações objectivas, procura marcar o lugar que nelas deve dar à Fisiologia.

«O objecto da Fisiologia é a vida.

«Foi-me necessária certa coragem para prónunciar esta palavra, quando ise me antolhava em seguida a necessidadé lógica da sua definição.

«Ocorreram-me logo à lembrança as discussões acaloradas e acerbas do jornalismo médico, das escolas e das academias; as peripécias repetidas desta eterna luta travada há vinte e tantos séculos entre os sectários dos diversos sistemas, e quási me senti desanimar».

E depois de dizer que a-pesar-de tudo, falando da Fisiologia, não pode esquivar-se ao delicado assunto, foge habilmente à vasta enumeração dos conceitos filosóficos em que estava prestes a envolver-se e reduz a questão a êstes simples termos:

«Julgo que neste ponto poderei fazer uma tentativa de conciliação, definindo a vida-fenómeno e não me pronunciando sôbre a causa dêste, ponto sôbre que incide tôda a discordância».

«Vitalistas, organicistas, materialistas e espiritualistas, qualquer que seja aliás a forma scientifica com que revistam as suas ideas, podem, sem prejuízo de suas doutrinas, admitir esta vida fenómeno ou resultado, ficando livre...

«Esta é a mais vasta concepção da palavra Fisiologia. Ela abrange todo o complexo dos sêres organizados desde a planta rudimentar até o homem. A vastidão do assunto reclama sub-divisões, às quais se tem procedido...»

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