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e de mais doce carácter, onde se conserva ainda o traje da Murtosa, o melhor padrão pitoresco da nossa indumentária

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por ésse rincão saudoso me levaram em pequeno à peregrinação do S. Paio da Torreira. Ia encantado com o deslisar do barco pela ria abaixo, levado à vara pelo tripulante a correr de pé descalço sôbre a borda. Ressurgiu-me esta visão, tão risonha de luz e colorido, das terras e dos canais vareiros, ao ver-me pela primeira vez dentro de uma gôndola pela laguna de Veneza - onde por contraste só descortinava negruras, na água, no canal, no barco e até no passageiro.

Na sua obra verdadeiramente exaustiva, em que tudo quanto se possa catar e contar sobre Gomes Coelho, tem lugar e textoapresentado com o rigor de método, próprio de um scientista, e com a forma clara e atraente, própria de um escritor de cunho

-quantos capítulos me despertaram e me

despertarão curiosidades; e digo assim por

que nem vagar tive de a ler atentamente toda. Espero que ma mande depois de impressa, se houver tempo, para Paris, para que à volta a sua leitura me amenize as horas lentas do combóio e linimente as amarguras do regresso, hoje tão melancólico.

Em livro, onde quanto se deseje, se encontra exposto, arrumado e anotado, procurei saber das relações de Júlio Diniz com Camillo. Que pensariam um do outro, o mestre consagrado do Amor de Perdição e o romancista novel da Morgadinha?

Contava-me o meu velho professor Pedro Dias que Camillo, ao tempo presa de profundo descoroçoamento, se lastimara de se ver excedido e incapacitado de ombrear com o rival. É possível que se deixasse invadir, como de outras vezes, por um errado sentimento de modéstia; despeitos de inveja, nunca lhos conheci para ninguém.

Não sei que na obra de Camillo haja referências a Gomes Coelho; que os camilis

tas digam se erro. Mas de Júlio Diniz há a carta do encontro em Lisboa com o mestre, a contar que éste lhe testimunhara o mais vivo interesse pelo homem e pelo escritor em termos efusivos, que na carta são propositadamente sublinhados, como quem diz - bem me fio eu nisso. As pessoas de carácter misantropo e abondadado são em extremo suspicazes; fogem do semelhante por desconfiança e temor; são como os animais ariscos que, quando se lhes faz festa, não estão tranquilos e nos olham receosos. Mal sabia Júlio Diniz, quão cruelmente ingrato foi. E seria o único pecado da sua vida. Camillo, poço sem fundo de sentimentalidade, era capaz de todas as piedades e devoções; compadecia-se da desgraça e das mágoas alheias, foi toda a sua vida um dedicado de alma. Possuia além disso, por paradoxal que pareça, um espírito singular de confraternidade literária, que traspassava as próprias refertas por agudas que fossem, êle que

ajoelhou diante dos caixões dos filhos de Teófilo e do sepulcro de Alexandre da Conceição. Ao ver êste pobre rapaz, tão cheio de esperanças, em iminência trágica de morte, dirigiu-lhe palavras de confôrto e de coragem; a gentileza foi recebida com desdém irónico.

Supõe v. que seria ressentimento por que na Gazeta Literária de Camillo o crítico Andrade Ferreira beliscara o justo amor próprio do autor das Pupilas. Repassei o artigo, recheado aliás de encómios raros ao romance e ao romancista, acusando-o apenas de desnaturalidades, de vez em quando cometidas nos sentimentos e nas frases de personagens aldeas — no que não se enganava o articulista. É o pêco do género bucólico, herdado já das antigas pastorais, e a que não escapava ao tempo o próprio Camillo nem os romancistas rurais lá de fora, desde Jorge Sand a André Theuriet. Hoje entre nós pende-se pelo contrário para a rustici

dade da dizedela a tal ponto que a pecha se virou do avêsso. No que Andrade Ferreira se desmandou, foi em taxar o estilo de incolor e desenxabido. Não creio todavia que os ressábios venham daí, nem tão pouco de prejuízos sectários de escolas literárias, e tanto mais que uma boa parte da camiliana se filiava nas mesmas tendências. A repulsa viria sim de uma antitese social e moralporque Júlio Diniz era de gema um burguês do Porto, nado e medrado entre aquela burguesia de masso e mona, com todos os seus direitos e tortos. O filistino tripeiro embirrava solenemente com o bando de estoira-vergas, janotas de estúrdias desavergonhadas, que lhe rondavam a porta, casquinando gargalhadas, ou piscando o olho para os caixilhos da janela a pôr em sustos a paz da alcova, e que ainda por cima o troçavam ao outro dia implacàvelmente nas crónicas da gazeta. Camillo e os seus satélites eram brigões temidos de pena e pulso-mente

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