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XXXVII

Ricardo Jorge

PORTUGUESES, CastelHANOS, HISPANOS

PORTUGUÊS amador da gaia sciência, que, nado e criado neste mais velho

rincão do país, riberas del Duero arriba, fosse no século XIII à côrte de Castela, onde tantos acudiam a terçar cantigas de amigo, de escárnio, e serranilhas, com os trovadores da aula régia de Afonso o Sábio, sem embaraço na sua língua falaria e versejaria. A roda do monarca, organizador da actividade intelectual de Espanha, como D. Denis, seu émulo em poesia e letras, o foi em Por-tugal, modula-se o idioma galego-português, literàriamente preferido ao castelhano pela sua flexibilidade graciosa...

Se mais de três sèculos andados arribasse a Espanha o adventício de Lisboa, a amada cidade de que Lope de Vega de

cantava os passeios, teria ainda o orgulho de divisar por tôda a parte portugueses em grandeza culta: poetas e escritores nos cenáculos madrilenos, professores nas cátedras salamanquinas, validos e médicos de câmara na côrte filipina. A língua não esquecera, mas substituíra-a havia muito o castelhano, no auge da sua supremacia idiomática...

Outro rodar de três séculos e estamos na actualidade, em que a scena muda de todo em todo. Portugueses, já quási não demoram por terras de Castela; das brandas modalidades da língua de Camões não há completa compreensão auditiva, e mal iria ao trato da conversação, se a evolução lingüística as não talhara tão parelhas. Por outro lado a nossa musculatura vocal, destreinada para a maior parte, mal se atreve à articulação, rude mas aberta, da enérgica e clara língua de Cervantes...

Volte-se ao denominador onomástico comum, tanto mais quanto há meio de evitar confusões melindrosas de naciona

lidade: chame-se Hispania à península Hispano ao seu habitante onde quer que demore, hispânico ao que lhe diz respeito. O papa João XXI, português de Lisboa, afamou-se como mestre e praxista das escolas medievais, com a rubrica de Pedro Hispano. O Fernando de Bulhões, il Santo de Pádua, também glória do berço lisboeta, se dizia de côr hispana. O portuguesíssimo judeu de Castelo-Branco, Amato Lusitano, um dos grandes mestres da Renascença Médica, a cada passo se apelida hispano, envaidecendo-se aliás do ninho paterno, e das façanhas dos seus compatriotas lusos. Não desfaz no foro nacionalista, nem implica com o país que a cada um pertença; é um apelativo histórico-geográfico, tal como para as nações da península setentrional da Europa o de Escandinavo...

Se em parte alguma da Europa há raças puras, muito menos neste seu calcanhar ocidental, onde tantos povos sucessivamente se acamaram e amaçaram numa mescla indestrinçada — o verdadeiro caos étnico. Querer que a faixa atlântico-portuguesa seja a o logradoiro duma raça extra-hispânica... sôbre não

passar duma criação imaginária, toca no absurdo e até no ridículo: mal vai ao patriotismo que se alimenta destas abusões...

Desde o banco das escolas importa cunhar no espírito dos alunos que somos parte de um todo. Ao ensinar-lhes a geografia, a história, a literatura, logo nos cursos secundários, faça-se a integração hispânica. Ponha-se ponto no vicioso sistema de scindir o solo e o clima, de apartar o passado, de separar as letras, numa unilateralidade onde, sob a aparência de um acto estritamente nacional, se esconde uma falsidade contra a natureza e contra a história, e um êrro anti-pedagógico e anti-scientífico. Este ilogismo talvez domine mais em Portugal que na Espanha; não há mais que olhar para os mapas do chamado continente português, que tantas vezes recortam o perímetro da raia terrestre, como se se tratasse de uma ilha. E' um laivo triste e significativo.

Inculque-se aos discípulos o amor do passado e o culto da pátria tradicional, tal como nos países italianos, germanos, escandinavos e outros, que na chama

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crescente dêsse sentimento se depuraram e acrisolaram. Eduquem-se a rigor e a primor no seio da língua materna; Portugal tem neste ponto que bater nos peitos, repèso e vexado, diante de qualquer país, a começar pela Espanha, onde impera o respeito do castelhano. Não há nação alguma no mundo onde se tenha perpretado com maior grosseria a vandalização da própria língua, aliás tão formosa e rica. Há que confessar com mágoa que é uma vergonha pública, sem que ao menos se note para a minorar, por parte dos que deviam manter êsse património, propósito ostensivo de emenda.

Nas faculdades de Letras faça-se a consagração catedrática das duas literaturas e das duas histórias. Nas nossas desgraçadamente cava-se essa deplorável lacuna; não conheço nenhuma mais censurável na nossa instrução superior... ¿Qual é universidade digna dêste nome, por esse mundo fora, onde não sejam professadas independentemente as letras castelhanas? Quando o não fossem em parte alguma, deviam sê-lo em Portugal...

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