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Depois, ao vêr-se perdido, só, faminto, na praia adusta de Moçambique, acudia a duvida na sua pequenez, logo corrigida pela affirmativa orgulhosa, quasi castelhana, do merecimento proprio:

Mas eu que falo humilde, baxo e rudo,
De vós não conhecido, nem sonhado?
Da boca dos pequenos sey comtudo
Que o louvor se ás vezes acabado.
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa esperiencia misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se achão raramente.

Pera servir-vos, braço ás armas feito;
Pera cantar-vos, mente ás Musas dada;
So me falece ser a vós aceito,

De quem virtude deve ser prezada.
Se me isto o ceo concede, e o vosso peito
Dina empresa tomar de ser cantada,
Como a presaga mente vaticina,
Olhando a vossa inclinação divina:

Ou fazendo que mais que a de Medusa
A vista vossa tema o monte Atlante;
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante:
A minha ja estimada e leda musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem á dita de Achiles ter enveja. 1

Ora essa malfadada empreza não é mais do que a volta ás conquistas d'Africa, pondo-se termo á gloriosa e desgraçada viagem da India, em cujos parceis naufragavam ao mesmo tempo a nau do poeta e os destinos da patria. Sente-se o prenuncio

1 C. X, 154-156.

funebre de Alcacerquibir... Além distante, nas costas do mar das Indias, divagando na praia adusta de Monomotapa, Camões ouvia, indistinctamente longinquo, o dobrar funereo dos sinos annunciando a morte universal; mas á sua mente, anciosa de esperança, taes sons afiguravam-se eccos de clarins proclamando uma victoria. As parcas preparavam o golpe final. Camões scismava:

Bem sei que heide morrer n'esta saudade
Em que meu esperar é todo vento...

E esse vento, levantando-se, enrolava os redomoinhos de areia que cegaram os soldados d'Africa, e cegavam tambem o espirito do poeta, desvairando-o com miragens de gloria... O sangue, a força, a natureza, reagiam contra o desespero d'alma que, por meio do silencio comprehensivo das noutes palpitantes, lhe mostrava no anniquilamento a suprema expressão da verdade, o mundo intelligibil, seu ideal.

Era o anno de 1569. Um dia fundearam em frente da ilha de Moçambique, arribadas, as naus que vinham de Goa para o reino. A bordo da Chagas, a capitaina, vinha o braço de D. Antão de Noronha, fallecido na travessia do mar das Indias, e que em testamento ordenára lh'o cortassem pelo cotovello para depois o levarem a Ceuta, pondo-o na sepultura de seu tio D. Nuno Alvares, e deitando o corpo ao mar. Assim se fizera. D. Antão entregára o governo ao vice-rei D. Luiz de Athayde, partindo da India acompanhado pela saudade de todos. Vinha nas naus D. João Pereira, ex-capitão de Malaca, irmão gemeo de D. Diogo, filho do segundo conde da Feira, fidalgo velho que recusára sentar-se na cadeira rasa que o novo vice-rei

D. Luiz de Athayde lhe offerecia por ordem de D. Sebastião, prohibindo aos fidalgos as cadeiras de espaldas. Vinham Gaspar de Brito; Manoel de Mello, filho de Ruy, o da Mina; Ayres de Sousa de Santarem; Antonio Cabral; D. Pedro da Guerra; Heitor da Silveira, o Drago, casado com a sobrinha de André de Resende, e que expiraria á vista de Lisboa; e finalmente vinha Diogo de Couto, que d'esta arribada escreveu o seguinte:

«Em Moçambique achámos aquelle principe dos poetas do seu tempo, meu matalote e amigo, Luis de Camões, tão pobre que comia de amigos e pera se embarcar para o reino lhe ajuntamos os amigos toda a roupa que houve mistér e não faltou quem lhe desse de comer, e aquelle inverno que esteve em Moçambique acabou de aperfeiçoar as suas Lusiadas para as imprimir». 1

Em taes apuros foram encontrar Camões os seus amigos chegados da India. Resa a tradição teremlhe valido contra Pedro Barreto, que o não queria deixar embarcar sem ser pago do dinheiro emprestado para a viagem de Goa. Se assim foi, Pedro Barreto teve logo na sua vaidade o castigo da sua avareza. Estavam ainda as naus no porto, quando a Moçambique chegou do reino Francisco Barreto a substituil-o no governo. Uma das primeiras reformas do reinado de D. Sebastião foi a divisão do vice-reinado da India em tres provincias independentes: uma a India propriamente dita; outra o Extremo-Oriente, de Malaca até á China, cujo governo foi em 1571 dado a Antonio Moniz Barreto; e a terceira, finalmente, Monomotapa, isto é, toda a costa oriental d'Africa, desde o cabo das

1 Couto, Dec. VIII, 28.

Correntes até ao promontorio de Guardafui, na bocca do Estreito de Meca, governo e conquista em que Francisco Barreto chegava investido e em que

encontrou a morte.

Em novembro, as naus largaram de Moçambique. A Chagas era a capitaina, e Camões vinha com Diogo de Couto a bordo da Santa Clara, do commando de Gaspar Pereira. Em abril de 1570 davam fundo, a salvamento, em Cascaes.

III

(1570-1580)

Em Cascaes, as naus fundeadas esperavam que Diogo de Couto voltasse de Almeirim, onde fora solicitar d'el-rei a sua entrada no Tejo, porque Lisboa estava fechada com a peste. Logo que a ordem veio, a Santa Clara entrou a barra.

Não nos disse Camões que impressões assaltaram o seu espirito ao pôr pé em terra; mas é verdade que a miragem seguida desde os confins do mundo, essa visão de uma patria que se confundia com o proprio céo, dissipava-se agora, esfolhando-se mais uma flôr de esperança porventura a ultima!

Lisboa era uma necropole. A peste, a peste grande, o flagello medonho, começára no verão de 1569, n'um estremecimento de terror popular, e ainda quasi um anno depois açoutava Lisboa, já menos intensa, porque a cidade morrêra ou emigrára quasi inteira. A côrte fôra esconder-se em Almeirim. Desembarcando na ribeira das naus, Camões parou, chorou decerto, vendo a rua Nova com os

seus formosos bazares fechados, os maraus jogando a bola, e a herva crescendo entre as lages da calçada.

A's primeiras chicotadas do flagello, o povo via claramente n'essa desgraça o castigo das maldades do anno anterior, quando o governo, para acudir á invasão de moeda falsa de cobre que os inglezes nos mandavam nos barris de farinha e nas pipas de prégos, levando de cá todo o ouro e toda a prata, ordenou a reducção do valor do cobre a um terço: o patacão de dez réis a tres, a moeda de cinco réis a real e meio, a de tres réis a um, a de real a meio. 1 Fez-se isto em quarta-feira de trevas, e os pobres, vendo-se perdidos, arrancavam as barbas de desespero. Muitos enforcaram-se. O gentio rico folgava, triplicando os trocos. A impressão foi tal e tanta, que desde logo se vaticinaram as maiores desgraças, e o anno de 1568 decorreu funebremente n'um terror. Em 1569 annunciava-se que no interlunio de julho, a 10, se havia de subverter a cidade: o Castello juntar-se-hia ao Carmo e a Almada. Já os casos de peste bubonica principiavam a repetirse. E se os montes da cidade não caíram n'esse dia em que ella se despovoou com mêdo, caía fulminada a gente na rua, conversando, ao topar com um amigo. O ar envenenava. O flagello seguia, crescendo em furia. Chegaram a morrer de quinhentas a setecentas pessoas por dia. Atulhados os adros das egrejas, era mister abrir fossos para enterrar os cadaveres aos trinta e quarenta, porque Lisboa estava «cheia de mortos que caíam aos bandos», e á falta de coveiros indultavam-se os galés. «Tudo nela era fogo e mortandade, choros e

1 V. Aragão, Descr. geral, etc., 1, 286-7.

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