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paz coroado que, para muitos, passava por doudo... O messianismo nacional nascia tambem n'este momento, e mais uma vez a alma de Camões era o calix mystico onde se dava o mysterio sagrado da transubstanciação dos instinctos fluctuando vagos na imaginação collectiva, em pensamentos nitidos claramente expressos na consciencia de um homem.

Foram seis ou sete semanas de palpitação febril: de 25 de junho, quando a armada saíu, a 4 de agosto, dia em que a catastrophe se deu. Uma manhan entrou desvairado no Tejo Diogo Lopes de Sequeira a contar o immenso desastre de Alcacer. O cardeal D. Henrique acudiu cachetico a Lisboa, «que achou Troya ardendo n'um grito geral e cheia de lagrimas, ais e suspiros d'alma, e a chusma com a perda e dôr toda desatinada». 1 O desvairamento invadiu toda a gente. Lisboa parecia uma mansão de doudos. Os homens, a força, os maridos, os filhos, tudo passára, tudo ficára em Africa. Havia apenas mulheres, creanças, velhos, enfermos; havia Camões, encostado ás suas moletas, vivendo de esmolas; havia o cardeal feito rei, pendurado aos peitos de Maria da Motta, como uma creança, tremendo de susto, bolsando o leite.

«Não posso calar, com serem pessoas de tanta calidade como são algumas illustres donas que vivem n'esta cidade, tamanha dissolução como vae e a grande licença que tomaram em suas dores, no modo de pedir a Deus boas novas, vida e liberdade dos maridos e filhos captivos. Muitas se recolheram mais que d'antes e nas egrejas mais perto oram e choram e pedem com honra e dor. Outras não ha

1 Carta a um abbade da Beira, ed. por Felner no Bibliophilo; Lisboa, abril-agosto 1819.

devoção defeza que não façam, nem feitiçarias que não creiam, nem beatas que as não roubem com suas superstições; e o que é peior, fazerem-se tão andejas e inquietas ao som de romaria que se seus maridos lá onde estão o soubessem, tomaram antes ser sempre captivos. Outras se juntam em egrejas (e ja se conhecem todas) onde as novas crescem e os juizos são tantos e o palrar tão sobejo que não ha la podel-as apartar e não ireis por rua que as não encontreis com certo numero de mulheres apoz si, necessarias á sua devoção, todas embiocadas, fazendo cocos; e para encher a copia da devoção das beguinas não fica negra, nem branca, nem rapariga em casa, que não vá no conto, as quaes por não deixarem de fazer seu officio vão de traz fazendo mais torcicollos e mochatins que em tragedias. E diante levam um velho parvo e um menino travesso. Assim vae o mundo ás avessas».

Assim ia Lisboa e o mundo portuguez: mulheres carpindo, precedidas por velhos e creanças, seguidas por escravas do Oriente rindo em gaifonas e tregeitos. N'isto se transformavam os dous mezes de uma esperança redemptora. Camões gemia a sua miseria, porventura a perda do seu jau escravo que lhe esmolava o pão. Acabrunhado n'uma pocilga, velho, pobre, só, irremediavelmente perdido, era a propria imagem da patria, a quem tambem uma a uma se tinham murchado successivamente as flôres candidas da esperança. Natercia, essa visão de ideal pureza, de um carinho ethereo, fugira da terra batendo as azas: morrêra, deixando-lhe a vida embalada como n'um sonho, em recordações de uma doçura ineffavel. A India, essa

1 Carta, ete.

outra amante que viera depois, da côr fulva do ouro, com um brilho secco de metaes, e os braços duros, os seios fartos, o peito forte da acção e do combate: a India da sua ambição partira-se em hastilhas rijas, como os metaes se partem, despedaçando-se n'uma ruina fria de chatinagem, de cobardia, de cobiça, «d'uma austera, apagada e vil tristeza!» Sião, a patria que sonhára emquanto andava pelas ruas de Babylonia: essa imagem carinhosamente bella, outra amante que nascia dos beijos de Natercia sobre a refulgente ruina de seu heroismo, vira-a tambem ao pôr pé no caes da Ribeira, feita uma necropole varrida pela peste, com os maraus jogando a bola na rua Nova, verde de herva. Morrêra tambem essa terceira amante!

E agora, o seu derradeiro amor partia-se despedaçado n'um fuzilar de relampagos, entre os nevoeiros densos da areia ardente de Alcacerquibir. Rasgava desesperadamente as folhas soltas do seu poema, e, abraçado á ultima chimera, o céo, entoava o seu canto de cysne, invocando a unica verdade,

a morte:

Oh! quanto melhor he o supremo dia
Da mansa morte que o do nascimento!
Oh! quanto melhor he um só momento
Que livra de annos tantos de agonia!

De alcançar outro bem cesse a porfia,
Cesse todo aplicado pensamento
De tudo quanto dá contentamento

Pois só contenta ao corpo a terra fria... 1

Dous annos de agonia, dous annos de silencio e dôr, dous annos como os passou Portugal, debaten

1 Sonn. 234.

do-se miseravelmente nas vascas do fallecimento: dous annos mais, e ao mesmo tempo, em 1580, Portugal e Camões caíam na terra fria de uma sepultura. Expirando, tinha o poeta sequer a amarga consolação de acabar com a patria. «Morro -com ella», disse, e finou-se.

Não admira, pois, que desde então Camões ficasse na alma popular como o symbolo da nação, e os Lusiadas como a sua biblia. Não admira que tivesse passado á condição de eponymo d'esta pequena patria, tão similhante a Athenas, e mais ainda a Sparta, na agitação da sua vida politica, na grandeza da sua missão colonial, e tambem na miseria funebre da sua decomposição.

Não admira que, desde o seculo XVII, por toda a parte onde surgisse, d'entre as ruinas do edificio nacional, algum fuste de columna ainda de pé, ou algum friso inteiro onde se visse correr agitada a tragedia de outras éras; por toda a parte onde se erguesse do matagal de urzes e cardos da historia a haste florída de uma açucena de saudade ou de esperança, a corolla d'essa flôr, ou a fórma d'essa evocação, tivesse o perfume e a côr dos Lusiadas e se considerasse uma revelação de Camões, o Paracleto portuguez. Cantando os Lusiadas, os ultimos leões da India defenderam Columbo perdidamente; e no nosso seculo o invasor, querendo regalar-nos como Cesar, promettia-nos um Camões para cada provincia.

Camões e D. Sebastião, os Lusiadas e Alcacerquibir, eis-ahi os dous homens e os dous actos que ficaram para serem gravados na imaginação colle

ctiva, como uma fé e uma esperança, como um mandamento e um captiveiro. Este Israel do extremo occidente, em que a plasticidade da imaginação grega se fundira com a tenacidade obscura. do phenicio e com o prophetismo genial do judeu, possuia afinal a sua biblia, e tambem chorava as ruinas do Templo, ajoelhado aos pés do vencedor que transformára Sião n'uma Babylonia castelhana. O sebastianismo que foi a religião lusitana, fórma epilogal do nosso patriotismo, veio até aos dias de hoje propondo Camões como o precursor de tudo quanto ha mais avesso ao pensamento proprio do poeta.

Fazer-se um propheta da democracia o homem em cujo cerebro ferviam os pensamentos classicos da monarchia universal, não é mais contradictorio do que arvorar-se em apostolo do livre-pensamento aquelle que levou a vida no ardor do combate religioso contra o mouro, e a acabou desvairado pela chimera da conquista do Santo-Sepulchro, ardendo em indignação contra os lutheranos, acceso sempre em uma fé inexgotavel.

E todavia, este contrasenso é só apparente e exterior. No fundo, o erro é um acerto; e a critica, se o não dissesse, provaria um limite de vistas incapaz de descortinar as miragens vagas da imaginação dos povos. A consagração historica de Camões vem ainda moldar se no processo remoto pelo qual os deuses foram abstrahidos da consciencia. nebulosa das gentes primitivas. A magia das palavras e dous ou tres momentos syntheticos da vida, tanto basta para que a imaginação plastica levante um mytho e dê uma supposta realidade á visão dos proprios desejos que passou, aérea, nos horisontes do espirito. Essa nuvem toma corpo, a apotheose

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