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dos, que se chama heroismo; e nenhum livro, de todos aquelles em que o espirito humano tem conseguido crystallisar alguma das suas concepções typicas, representa melhor o heroismo do que os Lusiadas.

Este temperamento moral tem, como tudo, os seus limites de capacidade comprehensiva, de efficacia pratica e de belleza esthetica. Por isso mesmo que procede mais do instincto do que da reflexão, o seu encanto é maior, maior tambem, por vezes, o seu alcance efficaz, e mais intensos os raios de penetração comprehensiva. Mas procede sempre como as cousas do instincto, que são irreflectidas, desordenadamente e em turbilhões. Por isso tambem a expiação do heroismo é o reverso de uma medalha gloriosa, manchada de nodoas, coberta de um pó que, soltando-se, conspurca, e, crescendo, suffoca dentro de uma cova a força e esplendor dos dias transactos.

E' então que, passado o momento de enthusiasmo febril, a intuição abrange os horisontes da realidade; e é por isso que as grandes éras poeticas nunca são as da plena expansão energica das sociedades. Os Lusíadas apparecem quando a patria agonisante estava já debruçada sobre a cova de Alcacerquibir. Virgilio vem tambem na edade classica de Augusto, quando Roma, terminada a época da sua expansão e grandeza, buscava nas instituições imperiaes e na «immensa magestade da paz» o triclinio dourado e cómmodo para ir passando os seculos da sua digestão apopletica. A incomparavel epopeia virgiliana exprime, na sua perfeição, no seu rigor, no seu saber artistico, esse meigo descaír de um sol que não dardeja mais os raios fulgurantes do meridiano, com

uns longes de cançaço annunciando a doença, com a madureza do espirito annunciando a velhice, com a melancolia crepuscular trazendo nas azas o negrume da noute.

Em Camões, a noute fecha-se com a morte do seu povo e com o desespero funebre da sua alma na força perdida da patria, na belleza apagada do mundo.

E como a condição necessaria do nosso heroismo era a ruina d'este povo, foi bom que Camões surgisse no momento em que veio ao mundo, pois é incontestavel e sabido que a intuição poetica adquire com a desgraça uma tempera e um gume desconhecidos nas épocas de fortuna. Os prophetas judeus cantaram os hymnos mais sublimes da piedade semita na propria hora em que a sua nação despedaçada caía em ruinas. Foi quando a Allemanha dos nossos dias, desconjuntada como nação, opprimida como povo, parece que devia jazer muda e esteril: foi então que surgiram os seus grandes poetas e philosophos e os inventores perspicazes, philosophos e poetas a um tempo, de todas essas sciencias novissimas que desvendaram os segredos da alma dos povos; foi então que tambem os artistas deram á musica um poder de expressão desconhecido, e assim, por dous modos, appareceu a maravilha mais extraordinaria, e acaso o limite mais intimo que póde attingir o pensamento humano. Foi emquanto se desenrolava a epopeia portugueza pelo Oriente, durante a Renascença, que, no meio da dilaceração dos seus estados, da oppressão ominosa do aragonez, das revoluções medonhas, das orgias sangrentas; quando parecia que a Italia se extinguiria, como seculos antes se extinguira a Grecia: foi então que o mundo viu com pasino as

maravilhosas creações dos artistas e as obras singulares dos poetas italianos.

Por outro lado, não são os povos, cuja acção é levantada pelo heroismo, os que provam eminentes no duro e paciente officio da construcção das nações, obra sobretudo do instincto pratico; da mesma fórma que não são os poetas os eleitos para o mister de estadistas. A sociedade humana tem no trato grosseiro e duro o quer que é de inferior, que choca e repelle a candidez do poeta, ao qual, por seu turno, a phantasia não deixa perceber a grandeza que, revestida pelas fórmas grosseiras e quasi vis da realidade, se encontra no fundo das cousas sociaes. Os temperamentos dos povos reproduzem, amplificados, os individuos: assim o grego, mestre da philosophia e das artes, mostrou ser como esses italianos hellenisados da Grande-Grecia, incapaz de passar além da vida democratica da cidade, de construir a nação e de conceber a idéa mais geral de patria e de sociedade. O mesmo diremos dos celtas que, na Irlanda, gemem sob o mando ferreo do saxonio, e que na França se debatem hoje com a instabilidade das fórmas governativas, depois de terem construido geographicamente a nação sob o governo feudal e monarchico dos frankos. Outro tanto diremos d'essa raça germanica, assente no centro do Imperio, bavaros, allemães, tão grandes pela intelligencia; tão fracos, porém, que sómente á voz dura do prusso, slavo e não allemão, souberam extrahir dos sonhos vagos da poesia patriotica a realidade da patria positiva e politica. O macedonio foi para o grego, como o prusso para o allemão, como o piemontez na Italia moderna, e como o romano que, na antiga, estendeu o seu imperio por todo o mundo então conhecido de europeus.

Nós, que na época das conquistas nos cançavamos tanto a imitar classicamente os romanos, chegando á parodia que se viu no triumpho classico de D. João de Castro em Goa; nós, porém, não tinhamos no nosso sangue a semente que aos romanos déra essa disciplina na força, origem do seu imperio. Celtas, não nascêramos para mandar: vieramos para descobrir, incitados pela curiosidade do genio; ao mesmo tempo que, porventura, remotas origens da nossa estirpe, porventura o trato contínuo com africanos, hamitas e semitas, mouros, judeus e arabes, davam ao nosso dominio um caracter feroz e funebre, intercalado de terror e orgia, illuminado simultaneamente pelo fanatismo e pela cobiça, que aos homens typicos, a Albuquerque por exemplo, imprimem por vezes a physionomia de um Assurbanipal, e á côrte em Lisboa o aspecto de nova Carthago, onde reina uma dynastia de mercadores fanaticos.

O nosso heroismo, pois, embora levantado sempre acima do drama desordenado dos castelhanos, por essa vis epica de Camões e por essa nobreza que os Lusiadas respiram de mistura com o terror, caracterisa-se fundamentalmente d'este modo, apesar de constante preoccupação classica dos eruditos e dos litteratos.

E', portanto, a reacção dos elementos basilares da nossa alma nacional que tambem caracterisa a dissolução d'ella. A cobiça mercantil converte o imperio n'uma chatinagem; a ferocidade produz a ancia com que os indigenas se voltam contra nós por toda a parte, e nos repellem assim que fraquejamos, reduzindo as nossas conquistas, que se estendiam até aos confins da China, a uma lembrança fugitiva apenas, cyclone tremendo que um dia passou so

bre os littoraes do Oriente, levando nas azas essa curiosidade insaciavel que tambem nos fazia querer

abarcar o mundo inteiro.

«Se mais mundo houvera, lá chegára», diz Camões; e D. Manoel tinha tomado já para si como emblema a esphera armillar symbolica. Esse symbolo exprime o idealismo da nossa ambição, que se não satisfaria senão com o absoluto.

Ora, quanto maior e mais desordenado o ideal é, mais extraordinario apparece o heroismo: n'isto se encontra a razão da immensidade e grandeza dos heroes creados pelas religiões. E' um sentimento da mesma especie que arrasta os portuguezes, em cujos cerebros tambem se agita a idéa de cumprirem uma ordem de Deus, praticando o que fazem. O instincto patriotico vem logo depois do religioso na escala dos motivos capazes de arrebatarem os homens até ao heroismo.

E esse heroismo, que leva os santos ao martyrio, é o mesmo que leva tambem ao supplicio as nações tocadas um dia pela vara fatidica do destino. Assettearam-nos, degolaram-nos; o nosso sangue correu, deixando-nos o corpo exanime, porque tinhamos commettido a loucura gloriosa de mostrar a terra ao mundo, desvendando os segredos dos mares, esquadrinhando os recessos das costas e angras, insinuando-nos por todas as enseadas, aportando em todas as ilhas dispersas na vasta campina dos oceanos tentadores. Todo aquelle que no mundo, homem ou nação, praticou uma obra heroica, teve como premio glorioso um martyrio. Esta crueldade das cousas é a suprema justiça para quem lhes comprehende a natureza.

Pagamos o nosso heroismo, como a França esmagada em Pavia, a Italia reduzida ás condições

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