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fidalgos que, depois da conquista, tinham feito, com Nunalvares á frente, a revolução gloriosa de Aviz.

O punhal e uns textos latinos de direito classico, reduziram a pó essas vegetações que destruiam a harmonia symetrica do novo estado, em cuja côrte reina agora a nobreza nova de mercadores-soldados, aventureiros audazes que por vezes chegam a ganhar proporções epicas, como um Affonso d'Albuquerque ou um D. João de Castro, sem por isso ganharem perante a corôa aquella authoridade dos fidalgos de outr'ora, amigos, conselheiros, irmãos, ás vezes tyrannos.

Agora são todos mercenarios e caixeiros de el-rei que, preoccupado sempre com as contas, desconfia de todos e muitas vezes, como succedeu a Duarte Pacheco, premeia o heroismo com a masmorra. «A cobiça de bocca aberta», como diz Sá de Miranda, eis-ahi a imagem ideal d'essa monarchia sonhada pelos poetas, e o retrato vivo dos cavalleiros da ousada avareza». Na côrte, o

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o verdadeiro rei não é D. Manoel, cuja mesquinhez todos reconhecem; nem D. João III, cujo mysticismo excede a capacidade commum; nem D. Sebastião, um desvairado; nem o Cardeal, um cachetico. O rei é o dinheiro, as façanhas são as razzias e os saques da India que enjudaizou Portugal inteiro, ao mesmo tempo arrebatado pela furia de exterminar of judeu suprema ironia da historia! O «mercadejar por baixesa se havia, em altesa se tornou», dizia

1 Gil Vicente, Romagem de Aggravados.

Sá de Miranda, recolhendo-se á sua thebaida, com as saudades dos tempos velhos; e Gil Vicente, ferindo a mesma corda, accusava:

Esta terra é rica

De pão, porque os lavradores
Fazem os filhos paçãos.

Cedo não hade haver villãos;
Todos d'Elrey, todos d'Elrey!

A côrte, com effeito, absorvia tudo. Lisboa e o seu luxo, o seu rio, o seu Tejo, porta aberta sobre o thesouro do Oriente, devorava o reino, ao longo do qual durante seculos os governos tinham derramado incessantes beneficios, para o arrotear e cultivar, restaurando-o da miseria em que os seculos das guerras mouriscas o tinham deixado. A India, eram outra vez os almuhades ou os almoravides: por todo o reino se estendia um sudario de despovoação e fome; e de toda a parte confluiam correntes de sangue vivo a confundir-se no Tejo em armadas levadas para a India com as velas cheias pela monção da aventura. Iam «mortos de fome, mas vivos de cobiça». 1

Camões, que pertence á geração educada na agitação dos tempos e das idéas novas, não hesita em condemnar o já archaico principio aristocratico da hereditariedade fidalga:

Aquelles pais illustres, que ja derão
Principio á geraçam que delles pende,
Pela virtude muyto antão fizerão
E por deixar a casa que descende.

1 Sá de Miranda.

Cegos! que dos trabalhos que tiverão,
Se alta fama e rumor delles se estende,
Escuros deixão sempre seus menores,
Com lhe deixar descansos corrutores. 1

Mas, se a fidalguia está para elle no merito pessoal, a observação directa das cousas suggere-lhe criticas mais acerbas ainda:

E vê do mundo todo os principais,
Que nenhum no bem pubrico imagina;
Vê nelles que não tem amor a mais

Que a si somente e a quem Philaucia insina;
Vê que esses, que frequentão os reais
Paços, por verdadeira e sãa doctrina
Vendem adulação, que mal consente
Mondar-se o novo trigo florecente;

Vê que aquelles que devem á pobreza
Amor divino e ao povo charidade
Amão somente mandos e riqueza,
Simulado justiça e integridade;
Da fea tyrania e de aspereza
Fazem direito e vãa severidade:
Leis em favor do Rei se estabelecem,
As em favor do povo so perecem. 2

De quem é a culpa?

Culpa de Reis, que ás vezes a privados

Dão mais que a mil que esforço e saber tenhão. 3

Não é. A culpa não é dos reis, não é de ninguem. A culpa é da propria condição das cousas, pois a empreza das conquistas só podia levar-se a cabo com a formação de uma aristocracia.nova, militar e

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commercial. E' verdade que nos tempos antigos só a bravura consagrava o heroe : não havia ainda côrte para coroar os espurios, nem para galardoar os serviços com castigos, ou com desdens...

Essa côrte nova é a que tripula a Barca da Gloria de Gil Vicente, em que successivamente entram um conde, um duque, um rei, um imperador, um bispo, um arcebispo, um cardeal, um Papa. A morte conduzia-os a todos. De um lado está a barca para o inferno, do outro a que vae para o céo. Satan governa a primeira, um anjo a segunda. Desde o Conde até ao Papa, todos se dirigem á barca do céo, mas o Anjo repelle-os:

Vuestras preces y clamores
Amigos, no son oidas:
Pesa-nos tales señores
Iren á aquellos ardores,
Animas tan escogidas.

E' verdade que no fim salvam-se todos; nem deante da côrte, perante a qual o auto era representado, podia succeder o contrario. Mas salvamse, como? Com a vinda de Christo, e agarrados aos remos que são as chagas do Redemptor. E' necessario o holocausto de um Deus para remir os crimes dos grandes.

Os vicios da sociedade nova «morta de fome, mas viva de cobiça», adulação, cortezania, ostentação e vaidade, provéem radicalmente d'essa supposição de opulencia que desde a descoberta da India desvairava toda a gente em Portugal. O principal personagem da farça dos Almocreves retrata o fidalgo do tempo, de quem o capellão diz na

peça:

Sou capellão d'hum fidalgo
Que não tem renda nem nada;
Quer ter muitos apparatos
E a casa anda esfaimada.

O fidalgo promette sempre e nunca paga. Dinheiro, não ha vêr-lh'o; o capellão diz-lh❜o:

E vos fazeis foliadas
E não pagais ó gaiteiro?
Isso são balcarriadas.

Trazeis seis moços de pé
E acrecentai-los a capa,
Como rei e por mercê,

Não tendo as terras do papa,
Nem os trattos da Guiné,
Antes vossa renda encurta
Como panno de Alcobaça.

Ao que o fidalgo responde:

Todo o fidalgo de raça
Em que a renda seja curta
He por força, qu'isso faça.

Estas palavras pintam uma classe. E estas aberrações explicam-nos a causa primordial da atrophia que o movimento de povoação do sul do reino, tenaz e fecundamente promovido até ao seculo XIV, experimentára com a generalisação dos morgadios, das herdades, do absenteismo, contra que as leis provavam inuteis. Foi n'esse sul do reino, interrompido no seu processo de constituição social e rural pela vertigem das navegações: foi em Evora que viveu o professor belga Nicoláo Clenardo.

«N'este paiz, escrevia para um seu amigo de

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