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abobada, em volta do seu tronco, sobre os altares terraplenados em circulo, estão as offerendas e os ex-votos, cocos e luzes animadas que os gentios vão depôr religiosamente. E o vento que passa pelas abobadas vivas da figueira de Vishnu, roçando as suas folhas coriaceamente finas, de um verde brilhante e metallico, agita-as, e ellas batem com um ruido secco, de papyros sagrados, vozes enygmaticas indecifravelmente expressas, emanações nebulosas da vida vegetal, capitosa e absorvente, que estonteia, desvirtua e entorpece a consciencia incipiente do homem.

Outro é o som claramente metallico e definido dos sinos que repicam em Goa, chamando para a vida, acordando para a acção heroica, os portuguezes, que as tentações do clima vencem a ponto de «com molheres de cá e trabalho em terra quente, como pasa hum ano, nom serem mais homeens», segundo Albuquerque dizia.

Repicam os sinos gloriosamente, fallam os canhões com imperio, soltam-se os vivas enthusiasticos. A natureza fez-se homem, e esses homens são heroes. E' Goa triumphante! D. João de Castro, vencedor de Cambaya, passa coroado com a gloria e a força do nome portuguez na India. O sol está no zenith, o seu resplendor deslumbra. Goa levanta-se, alva, nitida e luminosa, do seu berço de verdura, como uma idéa pura do cáos da inconsciencia nebulosa. E' uma fortaleza europeia, no meio do dedalo oriental. São muralhas e torres, bastiões e couraças que defendem a arce portugueza das arremettidas impotentes do Hidalcão, cujas terras,

pasmadas, se estiram em volta n'um adormecimento. São egrejas e palacios que coroam a cidade, erguendo-se ao lado dos bastiões, como fortalezas irmans, da fé e do imperio. São ruas, são praças, por onde a turba vestindo galas passa orgulhosa, revendo-se na sua gloria, conscia da sua força.

E' Goa, a metropole do imperio oriental portuguez, onde todas as gentes se encontram confundidas e todas as crenças approximadas; Goa, a capital de que só as frutas da terra rendem a elrei, afora o porto, vinte mil cruzados » ; Goa, o emporio do commercio com todo o Malabar e com Chaul e Dabul, em Cambaya; Goa, onde as naus de Ormuz que trazem cavallos para o Dekkan inteiro e para o reino de Narsinga, deixando cada cavallo a el-rei quarenta cruzados, levam de retorno o assucar e o ferro, o arroz e a pimenta, o gengibre e as especiarias; Goa, que hoje, trinta e sete annos decorridos desde o dia em que Albuquerque o terribil a captivou, triumpha imperialmente sob o sceptro de Castro o forte.

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Já o vice-rei largára de Pangim, subindo o rio direito a Goa. Vinha n'uma galeota, cercado pelos fidalgos velhos, seus companheiros de viagens e campanhas, com aquelle ar imponente e grave que a idéa das grandes cousas do tempo, comparadas ás edades antigas, punha no rosto dos homens lettrados. Nenhum tinha maior consciencia da grandeza do que o triumphador; nenhum, porém, teve mais força espontanea na vontade, mais lume na intelligencia, do que o outro-o homem! Albuquerque, o Alexandre portuguez!

1 Livro de Duarte Barbosa, na Coll. de not. da Acad.,

Os galeões da armada e uma floresta de fustas e vasos menores, embarcações de remo, com as velas içadas nos palancos, e as vergas e mastros engrinaldados de festões floridos, precediam a galeota do vice-rei, coalhando a ria. Mudo e grave, n'uma attitude composta de homem decidido a ser heroe, D. João de Castro vestia um roupão de setim carmezim com torçaes de ouro que lhe tomavam os golpes, coura de laminas assentada em brocado com seus tachões de prata, gorra de plumas e uma espada magnifica de copos de ouro cinzelado.

Subindo o rio, ao compasso dos remos, a esquadrilha triumphal parecia um bosque fluctuando no meio dos enxames das tonas, das champanas e almadias dos indigenas, parados entre o mêdo e a admiração. Já se approximavam, e nas ribeiras e caes de Goa oscillavam as ceáras de gente de todas as côres, batidas pelo vento da anciedade. Era uma turba confusa de indios e de malayos, de mouros e de jaus, de negros da Africa e do Concão: ghonds e kolas e sauras, mais os tuluvas do Canará. Já tinham deixado para traz, entre Ribandar e Panelim, a Ribeira-pequena; defrontavam com a grande. Nas carreiras dos estaleiros, o arcabouço das naus em construcção erguia para o ar, como braços acclamantes, as cavilhas desguarne idas; nos arsenaes arrumavam-se florestas das madeiras preciosas de Chaul e Baçaim; e por entre os navios em fabrico, varados na praia, elephantes de carga, com a sua tromba pendente, immovel, serviam de tribunas onde se apinhava a gente curiosa de vêr.

Marchava a esquadrilha triumphalmente, e á Ribeira-grande succedia a das galés e o caes de

Santa Catharina, padroeira de Goa, para o qual dava secretamente o palacio dos governadores, e onde vinham atracar á muralha as naus de Portugal, que os védores da fazenda, debaixo dos seus pallios de damasco, despachavam atarefadamente nas cargas e descargas, á vista do governador na varanda do palacio ladeado pelo boiá sacudindo as moscas com o leque de pennas de pavão. Era na Ribeira das galés que se varavam as fustas e galeotas, esperando o arrolamento dos reinóes mercenarios que haviam de guarnecer as armadas, e que entretanto se rolavam pelos prostibulos e tabernas da capital da India, depennados, pedintes, miseraveis; ou consumiam o tempo e o dinheiro sarabandeando-se emplumados pelas egrejas e pelas ruas em namoros infatigaveis.

Chegava o cortejo em frente do caes da Fortaleza. Abi atracavam as naus de Malaca, de Ormuz e do Malabar, e logo adeante ficava a Alfandega, o Bangaçal e o Peso; depois Santa Luzia, no caminho de Dangim; depois, no extremo oriental de Goa, sobre a margem direita do esteiro que de Combarjua leva a Touca, o castello de Benastary a que em seguida á conquista de 1512 se ficou chamando de S. Thiago. Mas no passo de Dangim, para além da pequena enseada onde affluiam todas. as manhans os enxames de tonas e champanas dos gentios, carregadas de fructas e hortaliças, o rio torce-se n'uma curva, fechando-se quasi, e terminando o alinhamento dos caes e ribeiras da capital da India.

Quando a frota chegou defronte do caes da Fortaleza, os galeões abriram alas, afastou-se a multidão das almadias, e pelo meio de um clamor de

vivas, entre o fumo da polvora, o estrepito dos canhões, o desesperado cantar dos sinos, o tocar das musicas e o dardejar implacavel do sol, n'um deslumbramento estonteante, a galeota do vice-rei foi magestosamente vogando até ao caes, vermelho de alcatifas. D. João de Castro, com os punhos cerrados sobre as coxas, os braços em arco, n'essa attitude ao mesmo tempo solemne e prompta á acção, attitude classica dos portuguezes da India, deixava correr impavido a embriaguez do momento. A' sua alma de justo, á sua ingenua alma de santo, os estrondos e esplendores do triumpho não acordavam orgulhos, nem vinham pôr na face o menor sorriso de vaidade. Quando Camões lhe chamou forte, acertou como sempre, porque esta gravidade epica foi a corôa salvadora do imperio portuguez no meio do desencadeamento brutal das paixões e appetites.

A galeota prolongou-se com o caes purpuro, e o vice-rei desceu com magestade, imitando classicamente um Cesar. Tinham rasgado a porta da cidade a toda a altura das muralhas, e de cada lado um leão de ouro sustentava em tarjas as roelas triumphantes dos Castros, destacando-se sobre as tapeçarias que cobriam os muros. Tinham feito no caes uma alamêda, por onde o triumphador seguia para a fortaleza de Diu, levantada no terreiro do Paço, e onde as bombardadas e tiros de festa faziam côro ás danças e aos hymnos entoados em honra do vencedor de Cambaya. No rio, a floresta espessa dos navios perdia-se nas nuvens de fumo branco das salvas.

Nunca, tanto como n'esse dia, se reconheceu a verdade do dizer de Albuquerque: «As cousas da India fazem grandes fumos...» Fumo era o trium

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