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Emquanto ella, coitadinha, suspirava cheia de escrupulos, elle conta o que fez:

Fomos ao rio de Meca
Pelejámos e roubámos.
E muito risco passámos.

Foram, saquearam, queimaram, encheram os bolsos de dinheiro. De volta na nau abarrotada de riquezas, quando não naufragavam na terra dos negros, espalhavam por todo o reino essa semente de corrupção, essa furia de gosar, esse desprezo "do escrupulo, essa ausencia de toda a especie de mêdo, com a hypocrisia que desorganisa as consciencias, e, levando as nações á ruina, nos conduziu a nós ao nihilismo quasi buddhico do seculo XVII, a éra das thebaidas e dos ermitões, e á comedia repugnante do seculo xvIII, «o reinado da estupidez »

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IV

Se a physionomia dos nossos grandes homens da Renascença differe das dos castelhanos coevos, de modo a não poder confundir-se; se a gravidade portugueza e este lyrismo a que nos apraz chamar celtico, contrastam com a physionomia dramatica do heroismo peninsular em Castella: é agora, nodeclinar das cousas para a ruina, que mais pronunciadamente se accentua a divergencia. O heroismo castelhano, pervertido, mostra-se cynico. O aventureiro epico do Mexico, do Perú, apparece reduzido ás proporções mesquinhas de um picaro.

Em Portugal a decadencia desmancha-se em lagrimas, afogada

No gosto da cobiça e da rudeza

D'uma austera, apagada e vil tristeza, 1

e a catastrophe provoca uma erupção de celticismo genuino e de messianismo estreme, na religião sebastianista com os seus mythos naturalistas das nevoas e das ilhas encantadas. A tristeza vem de longe:

Em Portugal vi eu já
Em cada casa pandeiro
E gaita em cada palheiro:
E de vinte annos acá

Não ha hi gaita nem gaiteiro.
Cada aldeia dez folias
Cada casa atabaqueiro,
E agora Jeremias

He nosso tamborileiro. 2

O temperamento lyrico e elegiaco do portuguez predomina, encaminhando para esse pessimismo ingenito de que em Camões vimos tão profundos laivos. Feita de contrastes e antitheses, a alma castelhana dissolve-se em invectivas e sarcasmos: a nossa perde-se n'um rio de lagrimas e saudades. Como na fabula de Icaro, eterno symbolo do heroismo, realidade para os povos peninsulares, as azas partem-se egualmente, mas por fórmas diver

sas.

E' que o nosso heroismo não era apenas um impulso da energia instinctiva, mas tambem um mo

1 C. x, 145.-2 Gil Vicente, Triumpho do inverno.

vimento da consciencia que, sem desvirtuar a força dos temperamentos, dava ás acções uma significação ideal. Por isso, ainda quando afundados nas escuridões da desesperança nos agitavamos, como os castelhanos, entre o quietismo jesuita e a penitencia inquisitorial, esmagando a vontade, immolando victimas a um deus de sangue e fogo, e pensando unicamente na conquista da bemaventurança e na expiação dos crimes, pela doação da terra inteira aos deuses do céo, casando a vida devota com a vida devassa: ainda então os sonhos do nosso instincto, creando espontaneamente a religião nova do sebastianismo, nos levantavam acima dos que, isentos de devaneios mysticos, viviam apenas dos choques e das antitheses de uma consciencia sem leme, arrastados miseravelmente pelo vento agreste do cy

nismo.

O traço que levanta o heroismo lusitano ás alturas de uma doutrina, fazendo dos Lusiadas a flôr magnifica de que a Araucana é apenas uma semente: esse traço que se imprime em todas as manifestações do tempo, que anima todos os heroes, que inspira a parodia do triumpho em Goa, e que de principio a fim caracterisa o poema de Camões, é o pensamento classico expresso n'estas palavras de João de Barros:

«A nação portugueza hoje mais que nenhuma conserva a gravidade e desejo de honra que antigamente sabia ter o povo romano». 1

E' a gravidade e desejo de honra que, no meio da desordem do individualismo, levantam e disciplinam o heroismo portuguez, dando-nos uma feição particular eminente sobre a força, a cobiça e a fé,

1 Paneg. de D. João 111, 145.

que impellem simultaneamente todos os que na Renascença obedeceram á viração de liberdade, enchendo as velas da nau da aventura.

D. João de Castro, a figura mais expressiva por ser a mais complexa, sem ser a mais gigante de toda a pleiade portugueza, allia em si á curiosidade naturalista do celta, ao amor mystico da natureza, á ancia de saber propria do tempo, a força e a fé lusitana, idealisadas, porém, sem serem diminuidas, por esse desejo de honra de que falla João de Barros. Christão e portuguez, é um estoico á antiga. As opulencias do Oriente não o contaminam, senão até ao ponto de lhe tornarem a virtude, não um acto natural instinctivo, mas sim, e á maneira dos estoicos, um resultado da vontade consciente e apparatosa. Faz gala de ser honrado, o que para 03 espiritos candidamente puros é já um symptoma da perversão que se insinua até pelas mais intimas regiões da alma. Na hora da sua morte não se encontra um real em casa; e durante a doença não ha com que lhe comprar uma gallinha. Em Goa empenha as barbas para acudir ás urgencias do thesouro; e quando o rei lhe dá a quinta da Penha Verde, manda arrancar as arvores de fructo. Estes traços, em que o mysticismo do celta transparece, véem passados atravez da preoccupação do estoico. No meio da per versão dos costumes, não lhe basta ser virtuoso é mister que todos o reconheçam. O desejo da honra e a gravidade, qualidades exteriores de aprumo e disciplina social, dominam, como de facto dominavam o querer dos portuguezes dos bons tempos.

N'isto consiste a redempção moral. Arrastados pelo destino á missão quasi providencial de descobrir os mundos ultramarinos, desempenhamo-nos

d'ella, ganhando um logar na historia da civilisação. Ficamos sendo alguem na série epica dos povos. Com as qualidades ingenitas do nosso temperamento construimos a nossa especie de heroismo, similhante ao grego dos Argonautas e ao semita dos carthaginezes ou assyrios; mas, acima d'essas expressões rudimentares da curiosidade, da cobiça, da fé e da violencia, pozémos em nossas consciencias um typo de honra e dignidade: esse typo classico ou romano que nos absorvia os desejos do pen

samento.

E', quanto a nós, esta moralisação da força que constitue o traço original do heroismo portuguez, e o nosso titulo eminente de gloria historica. Fomos os romanos da Renascença, protegidos por «Venus bella»

a gente Lusitana

Por quantas qualidades via nella
Da antiga tam amada sua Romana,
Nos fortes corações, na grande estrella
Que mostrárão na terra Tingitana,
E na lingoa, na qual, quando imagina,
Com pouca corrupção cre que he a Latina. 1

Mas este sentimento estreme, a cuja definição moral ou social temos vindo estabelecendo os caracteres, não era mais do que um aspecto do pensamento metaphysico nacional: o idealismo espiritualista que forma a atmosphera luminosa em que os Lusiadas e Portugal se agitam. Camões não é só o epico portuguez da força e da fé, nem o epico da sciencia e do commercio: é tambem o vate do pensamento philosophico moderno.

1 C. I, 33.

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