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ças nacionaes. No declinar das edades gloriosas, os povos preferem sempre pôr o seu ideal na negação do presente.

Outro episodio virgiliano é o dos cantos setimo e oitavo, quando Paulo da Gama explica ao catual de Calecut a historia portugueza pintada nos toldos das naus. 1 Na Eneida, o heroe, entrando no templo que Dido ergueu no bosque sagrado, pela primeira vez seguro de si e crente no futuro, emquanto espera pela rainha, vae admirando a fortuna de Carthago e a habilidade dos seus artistas, que ao longo dos muros deixaram pintados os combates de Illion na successão dos tempcs: illiacas ex ordine pugnas:

2

Purpureos sam os toldos, e as bandeiras
Do rico fio sam que o bicho gera;
Nellas estam pintadas as guerreiras
Obras que o forte braço ja fizera:
Batalhas tem campais aventureiras,
Desafios crueis pintura fera,

Que tanto que ao Gentio se apresenta,
Atento nella os olhos apacenta. 3

Essa historia portugueza, sobre a qual teremos de nos demorar mais tarde, enraiza-se na profundidade do tempo, e, á moda classica, os lusitanos vão procurar em fabulas os pergaminhos de aristocracia que só o tempo confere. A litteratura exprime n'isto, como em tudo, os instinctos primitivos. Tambem Virgilio entendia necessario filiar a historia de Roma na de Troya, que ia perder-se nos crepusculos da mythologia homerica.

1 C. VII, 73-7; VIII, 1-43.- -2 Eneid. 1, 450-6.

3 C. VII,

Em Portugal, essa preoccupação era dominante no seculo XVI. João de Barros, contemporaneo, irmão em genio de Camões, e porventura seu mentor erudito, escrevia:

«Jobel, filho de Jafet e neto de Noé, depois do diluvio, veiu ter a Hespanha, a qual d'elle e de seus descendentes se povoou: estes se governam por Respublicas e Comunidades. O primeiro homem, se quizermos dar fé ás fabulas antigas que n'ella, e em Portugal entrou com exercitos, foi Bacho; depois os curetes, gente da Grecia, seguindo a Gargores seu Capitão, se fizerão senhores della, o qual Gargores foi excellente Principe, e ensinou aos povos de Hespanha muitas cousas necessarias para a vida, e proveito comum, por onde os successores deste pacificamente reinarão até o tempo d'ElRey Girião, em cujo tempo, vindo Hercules o venceo, e nella ordenou novo estado. Depois, segundo dizem, reinou Hispalo, de quem se nomeou Hespanha, mas da successão dos Reys que d'este vierão e de como se acabarão a fama é incerta...» 1

Eis a historia: da mesma fórma que todas as invenções religiosas servem para aguentar a fé, tambem todas as tradições se fundem para determinar a origem dos povos: Noé, Baccho, Hercules, a Biblia e o Olympo, a Grecia, o Oriente e a Judea, presidem á historia da Hespanha. Camões não faz mais do que repetir:

Esta foy Lusitania, dirivada

De Luso ou Lysa, que de Bacho antigo
Filhos forão, parece, ou companheiros
E nella antam os Incolas primeiros. 2

1 Barros, Paneg. (1791) p. 11-2. 2 C. 111, 21.

Ulisses he o que faz a sancta casa
A' Deosa que lhe dá lingoa facunda ;
Que, se la na Asia Troia insigne abrasa,
Ca na Europa Lisboa ingente funda. 1

Se, portanto, a origem dos povos se enraizava por tal fórma n'um berço de milagres, já sem exclusivocaracter sagrado, pois que todas as idéas religiosas apparecem confundidas, que admira o facto do poeta carecer de um maravilhoso mais ou menos extravagante para sublimar os actos heroicos dopovo que se propõe cantar? O proprio da imaginação poetica é o symbolismo, caracteristica commum das artes e que symbolos inventaria Camões, senãoessas imagens pagans que a erudição e o estadoplastico da imaginação na Renascença evocavam simultaneamente? O Olympo virgiliano, ou camoneano, não é, portanto, uma simples fabula rhetorica é uma mythologia positiva. A imaginação carecia de symbolos que lhe representassem a vívida expansão naturalista do tempo; e sem força bastante para os extrahir de si, ia pedil-os de emprestimo ás creações poeticas do passado.

A Edade-média, n'um sentido renegada, não podia prestar á imaginação esses symbolos. O naturalismo meridional nunca assimilára a mythologia germanica, que tambem com a Reforma fazia erupção para além Rheno: para aquem irrompia o substracto de mythologia classica mal comprimido pelo mysticismo christão. D'esta fórma, a Renascença, despedaçando a theologia medieval, ao mesmo tempo que construia a nova Egreja, reformada divergentemente em Augsburgo e em Trento, res

1 C. VIII, 5.

taurava para a imaginação a mythologia odinica e a apollinea. Mallogradas as tentativas de unificação theocratica e imperial da Europa, concluidas as luctas homericas dos Papas e Imperadores, a Europa apparecia dividida pelo Rheno nos seus dous temperamentos constitucionaes.

Esta expansão da força natural dos povos e dos homens, que sobretudo caracterisa a Renascença, vê-se ainda mais nas memorias biographicas do que nas obras litterarias. No concilio olympico dos Lusiadas, o que resolve Jupiter a proteger os novos argonautas a caminho da India, é a commiseração:

Nas agoas tem passado o duro Inverno ;
A gente vem perdida e trabalhada;
Ja parece bem feito que lhe seja
Mostrada a nova terra que deseja. 1

A verdade biographica é muito mais heroica. Os argonautas da Renascença avançam crentes na propria força, com a illuminação de uma fé ardente. O Gama procede com a energia tacita de um lusitano; Colombo solta o vôo mystico d'essa imaginação que illuminára Dante, quando escreve no seu Diario: «Ya dige que para la esecucion de la empreza de las Indias nó me aprovechó rason, ni matematica, ni mapamundos: llenamente se cumplio lo que dijo Isaias». E affirma essa religião da sciencia, que faz da Renascença a verdadeira aurora dos dias modernos, quando, ao observar o desvio da bussola, não ọ percebendo ainda, attribuia a falta á estrella polar, porque las agujas piden siempre la verdad».

A confiança antiga na força dos homens, com

1 C. I, 28.

posta de saber e intelligencia alliados á vontade: eis o que dá um caracter novo á fé, que a Edade-média alliava ao pessimismo e á penitencia. A Renascença e um sursum corda. A humanidade canta um hymno. O mundo é bello, a vida é optima! E a sancção da vida, o premio do heroismo, o laço que aperta o mundo ao homem, já não é a esperança phantastica do céo, mas sim o gôso positivo do amor.

Para captar Eneas, Venus, apaixonada, soccorria-se a Cupido:

Nate, meae vires, mea magna potentia solus,
Nate, patris summi qui tela Typhoea temnis,
Ad te confugio, et supplex tua numina posco. 1

Para premiar os navegadores portuguezes, Venus tambem anciosa

Nos braços tendo o filho, confiada,
Lhe diz: «amado filho, em cuja mão

Toda minha potencia está fundada,

Filho em quem minhas forças sempre estão,

Tu, que as armas Tifeas tes em nada,

A socorrer-me a tua potestade

Me traz especial necessidade». 2

Camões traduz.

Esse premio são os paraisos da ilha dos Amores, que lembra uma kermesse de Rubens:

O' que famintos beijos na floresta!

E que mimoso choro, que soava!

Que afagos tam suaves! que yra honesta,
Que em risinhos alegres se tornava !

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