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Alguas doçes Cytaras tocavão,
Alguas arpas e sonoras frautas,
Outras cos arcos de ouro se fingião
Seguir os animais, que nam seguião.

Assi lh'o aconselhara a mestra experta
Que andassem pelos campos espalhadas,
Que, vista dos barões a presa incerta,
Se fizessem primeyro desejadas.
Alguas, que na forma descuberta
Do bello corpo estavão confiadas,
Posta a artificiosa fermosura,
Nuas lavar se deyxão na agoa pura.

Mas os fortes mancebos, que na praya
Punhão os pés de terra eubiçosos,
Que não ha nenhum delles que não saya
De acharem caça agreste desejosos,
Não cuydão que, sem laço ou redes caya
Caça naquelles montes deleytosos,
Tão suave domestica e benina,
Qual ferida lh'a tinha ja Ericina.

Algus, que em espingardas e nas bestas
Pera ferir os Cervos se fiavão,
Pelos sombrios matos e florestas
Determinadamente se lançavão;

Outros nas sombras que, de as altas sestas
Defendem a verdura, passeavão

Ao longo da agoa, que, suave e queda,
Por alvas pedras corre á praya leda.

Começão de enxergar subitamente
Por entre verdes ramos varias cores,
Cores de quem a vista julga e sente
Que não erão das rosas ou das flores,
Mas da Lam fina e seda diferente,
Que mais incita a força dos amores,
De que se vestem as humanas rosas,
Fazendo-se por arte mais fermosas.

Dá Veloso espantado hum grande grito:
«Senhores, caça estranha, disse, he esta;
Se inda dura o Gentio antigo rito,

A Deosas he sagrada esta floresta :
Mais descobrimos do que humano espirito
Desejou nunca; e bem se manifesta

Que sam grandes as cousas, e excellentes,
Que o mundo encobre aos homes imprudêtes.

Sigamos estas Deosas, e vejamos
Se fantasticas sam, se verdadeiras.»
Isto dito, velloces mais que Gamos,
Se lançam a correr pelas ribeiras.
Fugindo as Ninphas vão por entre os ramos,
Mas, mais industriosas que ligeiras,
Pouco e pouco sorrindo e gritos dando,
Se deixam yr dos Galgos alcançando.

De hua os cabellos de ouro o vento leva,
Correndo, e de outra as fraldas delicadas;
Acende-se o desejo, que se ceva
Nas alvas carnes subito mostradas;
Hua de industria cae e já releva,

Com mostras mais macias que indinada,
Que sobre ella empecendo tambem caia
Quem a seguio pela arenosa praia.

Outros por outra parte vão topar
Com as Deosas despidas, que se lavão;
Ellas começam subito a gritar,
Como que assalto tal não esperavão:
Hñas, fingindo menos estimar

A vergonha que a força, se lançavão
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que ás mãos cobiçosas vão negando.

Outra, como acudindo mais de pressa
A' vergonha da Deosa caçadora,
Esconde o corpo nagoa; outra se apressa
Por tomar os vestidos, que tem fora.

Tal dos mançebos ha que se arremessa
Vestido assi e calçado (que co a mora
De se despir ha medo que ainda tarde)
A matar na agoa o fogo que n'elle arde. 1

E' uma kermesse de Rubens, como a Renascença as desenhava na sua alegria ingenua de viver. Sobre a paisagem delicada que a reminiscencia classica debuxa na imaginação do poeta, representa-se o banquete da carne como os sentidos excitados dos homens de acção, portuguezes sensuaes e amorosos, os ideavam. Camões desenhou um typo de festins, em que, salva a distancia que vae sempre do typo ao exemplo, tanto elle, como Velloso, Leonardo, e todos os soldados da India, se deliciaram muitas vezes. A carnalidade portugueza foi até um dos elementos que tivemos de imperio.

Leonardo é a imagem do portuguez «soldado bem desposto, manhoso, cavalleiro e namorado » 2 feliz nos amores, mas sempre derreado por paixões, amavioso, como diria Fernão Lopes, terno, infeliz como Bernardim, dispondo da linguagem que seduz as mulheres. Perseguindo Efire, vence-a com os seus cantos de amor, «namoradas magoas» que sempre andaram em boccas portuguezas e a que as nymphas se rendem sempre:

Volvendo o rosto ja sereno e sancto,
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor. 3

A embriaguez augmenta, o delirio cresce, a bacchanal é completa; mas não ha nada que se pareça

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com as dyonisiacas da Antiguidade, em que a orgia se desgrenhava misturada com exaltações mysticas e contorsões de hysterismo. O veneno das doenças orientaes que mataram a Grecia, não apparece n'esta festa da phantasia, apesar de estarmos internados muito mais além pelo Oriente em fóra. O sensualismo é ingenuo, simplesmente carnal e pagão, sem allucinações mysticas. Os homens parecem creanças deixadas á solta, n'uma folga, depois dos trabalhos rudes da viagem epica.

E o sensualismo da Renascença foi assim: um vehemente desejo; sem os ardores de concupiscencia, que vieram tambem depois com as exaltações do quietismo monastico:

O' que famintos beijos na floresta!
E que mimoso choro, que soava !

Que afagos tam suaves! que yra honesta,
Que em risinhos alegres se tornava ! 1

Tal é o premio «dos feitos grandes, da ousadia forte e famosa»: 2 é o gôso de viver. Tambem a Renascença era a ilha dos Amores, que vinha depois da longa viagem através dos mares tenebrosos da Edade-média encapellados de mêdos de Deus, eriçados de syrtes infernaes, com os céos ennovelados pelas duvidas e os relampagos fuzilando tetricamente nas consciencias.

Mas esta alegria do mundo acclamando o gôso, idéa que está na mente do poeta apesar das suas confissões de que taes quadros são apenas ficções symbolicas, não resume por isso mesmo todo o seu pensamento. Pelo contrario: é sómente o pri

3

1 C. IX, 83. -2 88. -3 89.

meiro momento de definição, ou o primeiro degrau da escada de Jacob pela qual se sobe ao céo. Camões não é Rubens; Portugal não é a Flandres; a vida não é apenas uma kermesse, nem se resume no gôso sensual. Para alguma cousa nos haviam de servir a gravidade, a lealdade: todas as qualidades estoicas que temperavam o aço do nosso caracter heroico e apostolico.

Se a vida, porém, não é apenas uma kermesse de cobiça e gôso, de rapina e digestão, tambem não é, como quer o mysticismo allucinado do protestante, um peccado, nem uma protervia. O mundo, pelo contrario, é optimo; a acção é indispensavel; o trabalho é redemptor; o heroismo é sublime. Tudo isto affirma ao Gama, levando-o pela mão, grave-mente, sem requebros, nem ternuras,

Pera o cume dum monte, alto e divino,
No qual hua rica fabrica se erguia,
De cristal toda e de ouro, puro e fino, 1

a maior das nymphas, a quem se humilha e obedece todo o coro. Lá no alto d'esse monte, e no seio da fabrica de ouro da Razão, a filha de Vesta e de Celo revela ao heroe a verdade escondida nos prazeres que o côro das nymphas e dos navegadores vão gosando á solta. Essa verdade, conhecida só dos iniciados, consiste em

Que as Nimphas do Occeano tam fermosas,
Tethys e a Ilha angelica pintada,

Outra cousa nam he que as deleitosas
Honras, que a vida fazem sublimada:

1 C. IX, 87.

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