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Aquellas preminencias gloriosas,
Os triumphos, a fronte coroada

De Palma e Louro, a gloria e maravilha,
Estes sam os deleites desta Ilha;

Que as immortalidades que fingia
A antiguidade, que os illustres ama,
La no estellante Olimpo a quem subia
Sobre as asas inclitas da fama,
Por obras valerosas, que fazia,
Pelo trabalho immenso, que se chama
Caminho da virtude, alto e fragoso,
Mas no fim doçe, alegre e deleitc so. 1

A vida é, pois, o caminho da virtude; o gôзo é o seu premio. N'estas breves palavras está a chave do enygma da ilha dos Amores, fluctuante na imaginação dos tempos e ancorada pelo genio de Camões na rocha firme do estoicismo portuguez. D'este modo a realidade apparece comprehendida á luz da razão moral; e a desordem do mundo que a Luthero surgia como condemnação, quando a Justiça de Deus lhe soava na consciencia como trovões, transforma-se n'uma harmonia immensa, unica e positiva expressão da Justiça absoluta.

Sêde dignos, leaes, valorosos, justos e bons, e a vida vos será propicia e entrareis n'esta ilha das

venturas:

Por isso, ó vós, que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai ja do sono, do ocio ignavo,
Que o animo de livre faz escravo;

1 C. IX, 89-90.

E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambiçam tambem, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vicio da tirania, infame e urgente,
Porque essas honras vaas, esse ouro puro,
Verdadeiro valor nam dào á gente:
Milhor é mercellos, sem os ter,

Que possuilos, sein os merecer. 1

D'esta fórma a antinomia ideal do mundo se resolvia pelo sentimento moral. O combate da graça e da justiça, que afflige os mysticos, vence-se no cume do monte alto e divino, onde se ergue o palacio de ouro da razão humana. Dilatando as vistas d'ahi, as contendas parecem, como pareciam com motivo a Leão x, bulhas de frades. A eterna gloria da Renascença é ter percebido esta synthese pela arte; a gloria immorredoura de Portugal é têl-a realisado pelo caracter; e a gloria tambem immarcessivel de Camões é cantal-a nos Lusiadas, que a este respeito são tambem um prenuncio do criticismo contemporaneo.

1 C. IX, 92-3.

CAPITULO QUINTO

A nação portugueza

I

Substituir o maravilhoso christão ou medieval pelas fabulas da Antiguidade restaurada, não é em Camões, nem no Portugal quinhentista, um simples capricho litterario. Já procurámos determi→ nar-lhe as origens moraes e philosophicas; já indicámos tambem de passagem o traço politico intimamente relacionado com ellas, e voltamos agora para assentar melhor um ponto essencial na comprehensão da epopeia portugueza.

Assim como o Paraiso biblico se transforma na ilha dos Amores, onde, em vez de peccado-original, achamos a propria apotheose do amor sexual; assim como, em vez de céo, vimos abertas as portas do Olympo, e Jupiter no throno em que nos autos medievaes se sentava Deus-pae; assim como, logar dos córos de serafins e potestades da mythologia christan, dançam na terra e no mar as rodas de nymphas e sereias: assim tambem os heroes da

em

historia antiga tomam o logar dos campeões da Edade-média. Ajax substitue Rolando; Alexandre, Carlos-Magno; e o combate epico de Roncesvalles, ou as façanhas do Cid, esquecem-se pelas tradições da guerra de Troia.

O pensar, o sentir, a ambição e o desejo universaes, eram para Portugal reproduzir os feitos e o genio d'aquelle povo, o romano, que rematára politicamente a missão da Antiguidade mais caracterisada ainda pela força e pela grandeza, do que pelo encanto e agudeza peculiares dos gregos. Por um acto de vontade collectiva, Portugal quiz ser e foi uma imitação de Roma; e esse acto de vontade, semente da sua energia heroica, deu physionomia propria a um pequeno povo que primeiro vivêra indistincto entre os varios reinos da Hespanha, apenas porventura caracterisado differencialmente pelo lyrismo da sua alma celtica, egual em todo o caso dos dous lados do Mondego, mais egual ainda em ambas as margens do Minho.

A vontade consciente e deliberada de reproduzir Roma, encontrando um apoio natural e quasi physico, primeiro na tradição apenas negativa da separação autonomica, depois na expansão maritima e nos dominios ultramarinos, em parte filhos da geographia, em parte consequencia das necessidades da independencia: essa vontade firme e decidida cria um sentimento correlativo, o patriotismo, elevando-o ás culminações de uma piedade quasi religiosa, exactamente como succedêra em Roma.

A missão de Roma na historia dos povos europeus foi conceber pela primeira vez a idéa abstracta de Nação, deduzindo-a do facto natural da familia. Nenhum povo no mundo attingira ainda este momento de constituição social: nem os orien

taes, principalmente os semitas, portadores da idéa de Imperio, que era uma aggregação apenas militar ou fiscal, sem unidade na ascendencia, na lingua, nas instituições civis: conjuncção mais ou menos transitoria de elementos ethnicos dispersos e a que a espada de um guerreiro conseguia impôr um dominio brutal, dando-lhe só uma apparencia de ordem; nem os occidentaes, principalmente aryanos, e sobretudo os gregos, que exgotaram a sua vitalidade politica, sem saírem da esphera rudimentar da aggregação em cidades ou republicas federadas. O laço de união federativa não tinha o caracter de abstracção bastante para se affirmar de um modo categorico; o principio organico da unidade não excedia as muralhas de cidade, e, na sua instabilidade, as ligas apresentavam o aspecto de constantes aggregações e desaggregações de moleculas sociaes em busca de um novo molde constitucional.

Não o achou a Grecia, e por isso o valor da sua historia, eminente no pensamento e na arte, é mediocre nas instituições e na politica. Agitando-se ás cegas n'um torvelinho, teve de submetter-se ao governo de Roma para conseguir a paz que é, afinal, a necessidade primaria das sociedades, e o que ellas buscam quando procuram formulas constitucionaes.

Da ordem material dos imperios, da agitação esteril das cidades republicanas, extraíu Roma um typo constitucional novo, a Nação, e com elle um sentimento egualmente novo, o Patriotismo. A nação, alargando a milhões de homens e a regiões inteiras, os vinculos sociaes da cidade, unificados e generalisados, apparecia como uma urbs ideal em que o laço federativo se transformava no accordo das instituições e na centralisação da auctoridade,

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