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celta ou celto-germanica é a Belgica, e os belgas occupavam outr'ora toda a zona que vae do Sena até ao Rheno; nação celto-itala, ou gallo-romana pela conquista, bordada pelas zonas periphericas germanicas aggregadas na sua expansão historica, é a França, gauleza sempre, apesar de serem os. frankos quem lhe deu o seu nome moderno.

Na Hespanha, finalmente, os celtas, occupando a zona occidental da Lusitania e da Gallecia, cruzaram no interior com os indigenas, produzindo os chamados celtiberos. D'esta fórma as migrações aryanas avassallaram a Europa inteira, imprimindo o caracter da sua civilisação.

Mas de todos esses braços destacados da grande arvore oriental, apenas dous trouxeram até nós em monumentos escriptos as epopeias religiosas das suas edades inconscientes: foram o scandinavo e o helleno, cujos annaes sagrados se chamam o Edda e a Illiada. A materia prima das epopeias, o estado plastico da imaginação era commum, nem podia deixar de o ser; mas nem os celtas, nem os slavos, nem os italos, nem os germanos, deixaram de si monumentos epicos, deixando, porém, os materiaes dispersos do edificio por construir, nas sagas, nas tradições, nos ritos, nas crendices, nos usos do povo, recolhidas hoje piedosamente pela erudição.

Os latinos e os celtas, comtudo, uns pela bocca. de Virgilio, outros pela de Camões, vieram depois, em epochas de civilisação clara, definir litterariamente, individualmente, esse pensamento dos povos. que não tinha sido codificado nas edades de creação espontanea. A Eneida é tão itala na sombria magestade da intuição divina, na grandeza humana do imperio, na tristeza placida das cousas, como os Lusiadas são celtas no amor infinito dos céos, na

candura ingenua das almas, na curiosidade febril de conhecer, no encanto magico da vida, na meiguice da natureza, na humanidade do caracter.

Romanisada como a Hespanha foi, depois que saíu do dominio carthaginez, a sua alma celtica affeiçoou-se ao genio latino; e se as epopeias religiosas e heroicas dos italo-gregos constituiam para ella o manancial commum da vida do espirito, Virgilio veio accentuar mais particularmente o seu credo, como terceiro propheta, depois de Hesiodo e Homero, mais proximo nos tempos, mais familiar no pensamento. O baptismo moral da Hespanha estava consummado; a construcção epica das suas crenças, das suas esperanças, dos seus desejos e dos seus pensamentos estava feita. A Hespanha era romana; e Roma inteira, ampliada á extensão completa do mundo occidental, vivia palpitante no verbo virgiliano.

Os tempos antigos acabavam, porém, victimas dos proprios symptomas que Virgilio traduzia. A tristeza das cousas avassallava o mundo, extinguindo-o n'um soluço gigantesco; e a onda dos barbaros, que já desde os tempos de Mario bramia para além do Rheno e do Danubio, espiava tenazmente o desfallecimento progressivo da sociedade, outr'ora forte e crente em si propria. Todos sabem o que foi a queda do Imperio e que tempos se lhe seguiram.

Parecia que voltavam, e voltavam até certo ponto, com effeito, os periodos de plasticidade epica primitiva. Revolvidos os elementos sociaes por uma crise medonha, não só vinham sobrenadar, ao de cima dos campos alastrados pelas ruinas da cultura antiga, os stratos inferiores da sociedade conservados no estado ingenuo primitivo, como os povos que agora impunham o seu dominio ferreo chegavam

n'um estado analogo áquelle em que os dominadores antigos se tinham encontrado quando em volta de Troia debatiam as pelejas cantadas na Illiada. Eram barbaros.

Da barbarie em que a sociedade se viu lançada. brotavam espontaneamente efflorescencias epicas, e o alvorecer das litteraturas romanicas apresentava. os mesmos caracteres que em remotas edades apresentára o primordio das litteraturas classicas. O romanceiro do Cid é, para nós, como as historias dos. Niebelungen para a Allemanha; e para toda a Europa christan as vidas dos santos constituem uma epopeia do mesmo genero que as lendas sagradas dos eponymos da Antiguidade classica.

N'esta fermentação tumultuosa dos pensamentos. espontaneos affloravam os germens de indigenato, as sementes genuinas de herança ethnica, cellulas atrophiadas até então, no organismo mental do povo, por uma civilisação que reduzira a idéas e systemas, a canons e a preceitos, os elementos primordiaes sobre que se elaborára. No tumulto da Edade média peninsular ou hespanhola, veio á superficie o genio celtico: é o que revela toda a litteratura popular profana e sagrada, mystica e ecclesiastica, lyrica e epica.

A' medida, porém, que a tempestade serena, e nos espiritos e nas instituições se restabelece a ordem, apparecem as reminiscencias de um passado nunca de todo esquecido; e em parte por attracção propria dos modelos classicos, em parte por tendencia constitucional de espiritos ethnicamente affins, succede que o renascimento das lettras se caracterisa por uma imitação, mais formal sem duvida do que essencial, dos modelos antigos. O lyrismo classico renasce nos poetas novos, e todos reconhecem como

patriarcha a Virgilio: esse precursor do homem moderno, tão vate quando o concebia, que a Edademédia inteira fez d'elle o nuncio de Christo, e Dante, guiado pela sua mão, foi visitar os circulos terriveis do Inferno.

N'este sentido, pois, é que os Lusiadas, technicamente vasados nos moldes virgilianos, são uma nova Eneida; e tambem d'este modo affirmam o sentir da Renascença. Quererá dizer isto que os Lusiadas tenham como idéa-mãe o naturalismo olympico? Não; já a propria Eneida o não tinha. Entre a epocha de Homero e a de Augusto ha um lapso de tempo e uma distancia de idéas tão grande, ou maior ainda, do que entre a Renascença e as edades virgilianas.

Virgilio não crê já, nem no heroismo dos homens, nem no optimismo da vida, nem na divindade dos olympicos. O mundo transformou-se para elle n'uma comedia divina, quasi dantesca, em que as cousas são apenas os aspectos da transcendencia. Quasi dantesca, medieval ou christan: quasi, porque o mundo não é ainda uma phantasmagoria como depois foi, mas sim a representação harmonica, equilibrada, que tem por base os sentimentos abstractos de justiça, sabedoria, ordem e amor. Passada a crise medieval, a Renascença apresenta uma situação identica.

Dante escondia-se já, n'um passado tenebroso, e Goethe não se descortinava ainda no futuro: o ideal transcendente da Edade-média apagára-se nas consciencias, e o dos tempos modernos só tres seculos depois appareceria na figura do Fausto pantheista, expressão outra vez indefinida da natureza, cujo seio profundo absorve todos os sêres. Milton, Tasso, Camões, os epicos da Renascença, procuravam

n'essa epocha ainda heroica a ordem na harmonia do pensamento e da acção. Milton retemperava o homem na chamma delirante do livre-arbitrio; Tasso resuscitava a republica platonica; só Camões vibrava a nota fecunda da paixão contemporanea do mundo: a paixão de o conquistar e explorar em toda a sua redondeza, dominando-o com a força e o pen

samento.

Esta idéa é genuinamente latina: é classica por todos os lados, classica pelo Imperio, classica pela Ordem. Augusto, no seculo XVI, seria como um monarcha lusitano; e Virgilio, em vez de cantar a immensa magestade da paz romana, cantaria a immensa vastidão do imperio portuguez. O que Virgilio, porém, não cantaria com o primor e certeza da voz camoneana, era a derrota dos navios, as paisagens dos oceanos, as danças das ondinas agitando-se nos coruchéos de espuma da vaga, nem as seducções do mar, os encantos mysteriosos das ilhas e bahias ignotas. Esses segredos que enlevavam a imaginação celtica de D. João de Castro; esses murmurios que davam á voz de Camões as notas das sereias enygmaticas, são diversos da voz de Virgilio, para quem o mar era um lago romano; embora á sombra da sua ramada o mantuano, que tambem era celta, sentisse borbulhar-lhe no intimo peito o mysticismo da natureza rural.

O que Virgilio tambem não cantaria, n'esta linguagem camoneana que, tendo a pureza immarcessivel da sua, lhe accrescenta a ingenuidade homerica sublime e etherea, e a imaginação luxuriante da Renascença, peculiar do Tasso; o que elle não cantaria tambem era o Commercio, esse composto de Pensamento e Imperio, que na Renascença vem tornar-se o que já remotamente fôra nas mãos dos

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