guez, manifesto ainda nos momentos em que a imaginação acorda enfurecida pelas evocações tragicas dos combates: Deu sinal a trombeta Castelhana E as mais, que o som terribil escuitárão, E' Aljubarrota (1385). E' a guerra. Toda a natureza pasma e treme, e, no meio d'este susto immenso, as mães apertam os filhos contra o seio. Na tela epica onde se desenrola o fragor e a commoção esmagando o mundo, o primeiro logar é o das pobres mães. A natureza inteira está suspensa d'esse seio turgido do amor, que é a propria fonte da vida universal. N'outro ponto é D. Francisco de Almeida que parte a vingar a morte do filho trucidado no morticinio de Chaul (1508): Eis vem o pay com animo estupendo, O odio e a colera confundem-se com a dôr. Qual 1 C. IV, 28.2 C. x, 33. é maior: a furia do capitão, ou a angustia do pae? No coração tem fogo, mas nos olhos tem agua. A morte do filho e o desastre das suas armas enchemn'o de desespero, mas tambem de dôr. Não é um olympico, é um homem, e um homem dominado por sentimentos graves, piedosos, como os de Eneas. Não ha aqui imitação virgiliana. O caracter nacional, exactamente sentido por Camões, compõe-se de gravidade quasi romana, aquecida, como no mantuano, pela sentimentalidade naturalista; e d'essa furia tragica, terrivel, quasi carthagineza, que imprime ao poema um caracter obscuramente fatidico. Não é o desespero e a violencia dos homens barbaros de Shakespeare, estudados e pintados como nunca ninguem pintou a natureza na sua crueldade humana. Os homens de Camões só por momentos, excepcionalmente, apparecem animados pela furia e pela força portugueza. Não é isso que lhes imprime caracter, pelo contrario: são os traços de gravidade classica e de sentimentalidade celtica. Mas com as erupções occasionaes da furia succede como nas regiões vulcanicas. Basta o borbulhar das fontes de agua em ebulição, o rebentar aqui ou além de um pennacho de fumo; basta a côr metallica dos arroyos e as nodoas sulfurosas da terra: não é mister lava nem trovões, para se sentir que marchamos sobre abysmos de fogo subterraneo comprimido. Assim succede nos Lusiadas com o Terror lusitano, que exerce na imaginação o papel soberano da Moïra grega, ou do Fatum latino. Esta forte impressão epica é a atmosphera que envolve toda a acção, e em cujo seio se agitam os episodios. A propria tristeza, ou antes, melancolia doce do genio portuguez, tão completamente sentida nos Lusiadas, vem em abono d'esta observação, porque a passividade na tristeza importa o reconhecimento de um Fado absoluto, contra o qual não é dado erguer a cabeça. D'esses quadros de melancolia inexcedivel, em que a natureza inteira chora e soluça acompanhando os homens, estão cheios os Lusiadas. Uma vez são os que ficaram em Sofala, na viagem de Vasco da Gama, victimas do escorbuto; a estrophe é um adeus: Em fim que nesta incognita espessura Outra vez é a transfiguração de S. Thomé, o apostolo lendario das Indias: Chorarão-te, Thomé, o Gange e o Indo; Outra vez, finalmente, é a melancolia de deixar a sua querida terra, quando largava para o Oriente (1553): 1 C. v, 38.- -2 C. x, 128. Ja a vista pouco e pouco se desterra Este amor naturalista da patria é que ao poeta mais frequentemente acorda a sua melancolia constitucional e lusitana. Nem admira, porque, de todos os sentimentos congregados na sua alma, o amor patrio, nos successivos momentos da sua definição, é o mais constante, disseminando-se como os capillares que vão por toda a parte do corpo distribuir o sangue e a vida. Achou a litteratura nacional dividida em tres facções ou escholas: os petrarchistas, os trovistas e os latinistas; os litteratos à la moda, os seguidores da tradição popular medieval, e os imitadores cegos da Antiguidade. Ao mesmo tempo encontrou uma lingua já feita, mas ainda por consagrar, e um instrumento, a rima, que os arabes tinham popularisado na Europa. Taes eram os materiaes litterarios reuniu-os, fundiu-os, fez-lhes como Deus ao barro vermelho do paraiso, e creou. Mas estes materiaes litterarios correspondiam a estados moraes que agitavam as consciencias: o petrarchismo lyrico traduzia a sentimentalidade ingenita do celta lusitano; o latinismo accusava a sua ambição classica; e finalmente os trovistas populares exprimiam a verdade com que a patria portugueza mantinha ainda o amor da sua tradição pro 1 C v, 3. pria, a lembrança dos velhos tempos de inorganismo medievai acabados pouco havia por D. Manoel com a reforma dos Foraes. Camões soprou, como o Creador, sobre a imagem de barro, inspirou-lhe vida, deu-lhe movimento, alma-azas! e soltou a voar nos ares a pomba gerada no seu seio por um acto de vehemente amor patrio. Os Lusíadas são essa ave: o paracleto da nação portugueza. Cantam As armas e os barões assinalados como a Eneida, que começa: Arma virum que cano Trojae qui primus ab oris... Os Lusíadas e a Eneida são as duas epopeias nascidas do pensamento consciente, em que o amor naturalista da terra se define n'uma idéa: o patriotismo. Todas as epopeias cantam o solo onde os heroes nasceram; mas só estas fazem do patriotismo uma especie de religião: fé e piedade em que se transforma o instincto primitivo. Com uma franqueza que talvez chegue a ser cruel, Camões diminue o seu heroe para levantar o sentimento que verdadeiramente o inspira, isto é, o patriotismo, e de que Vasco da Gama não é mais do que o accidente occasional. O critico apparece; e o defeito esthetico de amesquinhar o 1 C. I, 1. |