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CAPITULO SEGUNDO

Luiz de Camões 1

I

(1524-1553)

A vida de Camões decorre desde 1524 (ou 23) até 1580. Nasce quando morria o descobridor do caminho da India; e morre quando acabava, depois da catastrophe de Alcacerquibir (1578), a independencia portugueza. Divide-se naturalmente em tres periodos: antes da partida para o Oriente (1524-1553), vinte e oito annos de mocidade; durante as suas viagens ultramarinas (1553-1570), dezesete annos de aventuras; e depois do regresso á patria (1570-1580),

1 A vida de Camões foi modernamente restaurada pelo V. de Juromenha na Coll. das obras do poeta, pelo snr. Th. Braga na sua Historia de Camões, p. 1 (1873) e agora pelo sur. Wilh. Storck, o eminente traductor allemão do nosso epico: Luis' de Camões Leben, Paderborn, 1890. N'estas tres fontes colhemos muitos dos elementos do nosso re

sumo.

dez annos de agonias, ao cabo dos quaes Camões concluia a vida aos cincoenta e cinco (ou seis) annos de edade.

Essa vida é breve, como em geral a dos poetas; e foi tormentosa, como veremos por este rapido ensaio. Os paes de Camões, de uma estirpe raiana do Minho, entroncavam-se n'uma d'essas familias gallegas que, nos azares dos dous primeiros seculos da monarchia, oscillavam entre Portugal e Castella, transpondo a fronteira, emquanto não ficou assente o destino meridional da nova patria, a fixação da capital em Lisboa, e o abandono consequente das antigas pretenções a encorporar toda a Gallisa. Em ambas as suas margens o Minho é gallego; ainda hoje ha casas historicas, cujos bens se dividem por ambas ellas; levou seculos a consummar-se a scisão politica da Gallisa em duas, pelo Minho; e só se tornou definitiva, dissipando-se a ambição portugueza de a absorver, quando Portugal, trasladando a capital para o sul, de Guimarães ou Coimbra, onde fora, para Lisboa, onde ficou sendo, perdeu o caracter de nação gallega e com elle a ambição de exercer sobre a Gallisa inteira a sua hegemonia.

O sangue de Camões era, pois, genuinamente portuguez: minhoto ou gallego, o que é o mesmo. Seus paes, embora de antiga linhagem, só pelo gerarem se tornaram illustres. Simão Vaz de Camões era um escudeiro ou cavalleiro-fidalgo obscuro que vivia na côrte, e em 1553 se encontra trasladado para Coimbra. Sua mãe, Anna de Sá de Macedo, sobreviveu ao filho, arrastando penosamente uma velhice a que a pensão de seis coroas, decretada em 1580, e em 1585 elevada a quinze mil reis, vem mitigar a pobreza.

Foi em Lisboa (ou em Coimbra) que nasceu Camões, e ahi passou a primeira infancia. Aos treze annos, em 1537, tendo partido dous annos antes para Coimbra, achamol-o cursando as aulas do collegio de Santa Cruz sob a protecção de seu tio, o prior D. Bento, geral da Ordem, válido de D. João III e depois (1539) cancellario da Universidade, que nutria a esperança de o fazer entrar na vida ecclesiastica.

A Universidade, transferida de Lisboa para Coimbra em 1537, dous annos antes da nomeação do geral D. Bento, era então centro de estudos fecundo e forte, onde el-rei D. João III congregára um nucleo de homens eminentes pelo saber. Recrutára os por toda a Europa, e a fama dos estudos da Universidade de Coimbra soava por toda ella. As lettras e as linguas classicas eram cultivadas com aquella profunda fé que a Renascença collocava na efficacia do humanismo. Parecia-lhe uma revelação. Ainda a doutrina de Santo Ignacio não viera desvirtual-o, podando-o e tornando-o instrumento servil, não já da theologia, como na Edade-média, mas de uma nova disciplina do pensamento. Ainda o jesuitismo não tinha invadido Portugal, nem portanto absorvido, como absorveu depois, a universalidade dos estudos.

Ainda então as lettras se não consideravam um instrumento apenas; mas, pelo contrario, punha-se no saber e na educação do espirito o proprio fim, o proprio objecto da vida. O humanismo era uma philosophia.

Lettras, sciencias cultivavam-se em Coimbra fervorosamente. A Universidade congregava o que Portugal tinha, e era muito. Coimbra parecia Athenas: Athenas esse credimus. Ensinavam ahi Pedro

Nunes, o mathematico, André de Gouveia, João da Costa, Diogo de Teive, Antonio Mendes, João Fernandes, André de Rezende, o archeologo, Ignacio de Moraes, Melchior Belliago; e aos professores portuguezes juntava esse rei, com quem a historia moderna tem sido atrozmente injusta e cujo governo foi incomparavelmente mais lucido e forte do que o do Venturoso, os mestres mandados vir de França, por ordem do doutor Diogo de Gouveia, que a esse tempo andava na Universidade de Paris, e era reitor ou principal do collegio de Santa Barbara. Francezes, hespanhoes e inglezes, eram Gronchio, Fabricio, Rosetto, Elias, Jacques, Patricio e Buchanam, para o latim, grego e hebreu e para as artes; eram Cuellar, Reinoso, Guevara, para a medicina; Santa Cruz, Arnanio, Scott, para as leis; Navarro, Alarcão, Morgovejo e Andrada, para o direito canonico; e Ledesma, Prado, Monson, Romeu e Villariño para a theologia. A Universidade gosava de altos creditos em toda a Europa, e era a primeira das Hespanhas: Coninbriga civitas inter alias totius Hispaniae in re litteraria florentissima.

Eis-ahi o foco d'onde irradiou, sobre o espirito de Camões, a primeira luz da educação; embora pareça averiguado que nunca passou dos estudos menores, no collegio de Santa-Cruz, para a Universidade. Eis ahi onde travou as relações e amisades que o acompanharam no decorrer da vida. A sua mocidade exhuberante encontrou no genio da Antiguidade classica o alimento de uma iniciação forte; mas o destino posterior da sua vida e a pujança espontanea do seu talento impediram que essa iniciação fizesse murchar, como succedeu tantas vezes, a originalidade e a nacionalidade do seu

genio. Vestiu-se á antiga, ficando sempre moderno, pelo coração e pelo sangue. Adoptou as regras da arte ensinadas pelos mestres, mas conservou forte o instincto vivamente espontaneo.

Desde o principio e toda a vida, portanto, apparece como um rebelde, um insubmisso, um dissidente, e por tudo isto um vencido. Engeitou os conselhos do tio que o queria fazer padre, e, terminados os seus tres annos de estudos preparatorios, em 1542, volta á côrte aos dezoito annos, a lançar

se no

grande mar

Com somma de pescadores,

como Gil Vicente dizia, alongando um adeus a Coimbra onde obtivera a primeira revelação do seu genio, pela iniciação no lyrismo provençal e petrarchista.

Doces e claras agoas do Mondego,
Doce repouso de minha lembrança,
Onde a comprida e perfida esperança
Longo tempo apoz si me trouxe cego,

De vós me aparto, si; porem não nego
Que inda a longa memoria, que me alcança,
Me não deixa de vós fazer mudança,
Mas quanto mais me alongo, mais me achego.
Bem poderá a fortuna este instrumento
Da alma levar por terra nova e estranha,
Offerecido ao mar remoto, ao vento.

Mas a alma, que de cá vos acompanha

Nas azas do ligeiro pensamento

Para vós, agoas, voa e em vós se banha. 2

O Mondego, onde se lhe havia de banhar sempre o pensamento, fôra-lhe a fonte de Castalia em que

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