consciencia do seu destino, soube que em Lisboa morrêra essa que fora para elle a fôr mystica da sua vida, soltou um grito como os de Job: O dia, hora em que naci moura e pereça A luz lhe falte, o sol se escureça, As pessoas pasmadas de ignorantes, Oh gente temerosa, não te espantes, A mesma alma, porém, que rugia com desespero, chorava meigamente como pomba n'estes versos, porventura os mais bellos de Camões: Alma minha gentil, que te partiste Se lá no assento Ethereo, onde subiste, E se vires que pode merecerte Roga a Deus que teus annos encurtou, A expressão é inteiramente diversa. Além sentese o desespero, a dôr, a furia contra uma punhalada crueldo destino. Adivinha-se como a imagem da amante enchia absorventemente a vida do poeta, e de que loucuras elle teria sido capaz, quando em moço, na côrte, com a alma ainda em botão, na embriaguez de uma paixão irritante, ou soffria as consequencias dos caprichos da rapariga, ou dava. largas á sua vaidade imprudente pelos obsequios com que ella o favorecia. i Sonn. 339. 9. - 2 Sonn. 19. Ou por se ter batido em duello com algum rival, ou porque o colhessem no dialogo de alguma egloga, o facto é que o rapaz foi banido da côrte. Attribuem tambem o desterro a invejas e rivalidades litterarias provocados já pela gloria do poeta; dando-lhe egualmente como causa a comedia de Elrei Seleuco, transparente satyra a D. Manoel que em terceiras nupcias desposára a noiva do filho, D. Leonor d'Austria. Dos lamentos de Camões parece inferir-se que havia razão de queixa contra Natercia. Arrependia-se do tempo em que fôra livre , e escrevia : A chaga que, Senhora, me fizestes, Exilado em 1546, Camões vae a Coimbra, onde vivia ainda o tio D. Bento, e de la volta breve a cumprir o desterro, fixando-se em Constança, sobre o Tejo. Longe da côrte e das suas tentações, longe da fascinação do olhar de Joconda, Camões, em frente do Tejo, sentia nascer-lhe no peito uma alma nova que desabrochava no naturalismo das Eglogas e canções d'esse periodo 1. Vê o apuro, suave e rico Tejo, com as concavas barcas» e do alto dos montes da margem fallava 1 Eglog. 3. 2 Sonn. 77. 3 Sonn. 123. ...com a agoa que não sente Com cujo sentimento est'alma sae Em lagrimas desfeita claramente. 2 Natercia, o amor feito mulher, fôra o medianeiro que o acordára para a vida pathetica; e por elle o seu sentimento agora se alargava á natureza naturante, como diz a philosophia-esse outro medianeiro do ar e das aguas, tão fascinantes, tão caprichosos, tão enygmaticos como o olhar dubio da Joconda. Pela natureza a sua alma penetrou no Ideal; e foi este, segundo alguns biographos indicam, o primeiro momento da concepção dos Lusiadas. Surgia na alma do poeta a sua missão, como a alvorada de um dia quando gradualmente emerge das nevoas crepusculares. Era o sol que lhe nascia no peito, levantando-se n'essa paisagem incomparavel do valle do Tejo, cercado por um côro de nymphas, a quem o poeta implorava de joelhos que o soccorressem na empreza nova em que lhe ardia o peito: E vós, Tagides minhas, pois criado 1 Eglog., espec. a 5.a ; Canç. 7, 8 e 15. 2 Eleg. I. Dai-me agora hum som alto e sublimado, Que não tenhão enveja ás de Hypocrene. 1 E' a patria que elle quer cantar; é o patriotismo o novo sol que lhe illumina o pensamento. E' Portugal a palavra magica, Lusiadas, que lhe sôa aos ouvidos, cantada em côro pela natureza inteira, murmurada pelo Tejo a deslisar sereno, engolphando-se se mansamente no vasto Oceano do seu pensamento epico. Ahi as ondas agitam-se coroadas de espuma. Sossobrará? Não ha de sossobrar... Embriaga-a o doce vinho da esperança, que todo este povo, embarcando ávido nas praias de Lisboa, bebe com ancia e descuido. O poeta, a nação, confiam ambos em si proprios : na sua força, no seu genio. As miragens do futuro não mentem. A vida, à gloria, a fortuna, a grandeza incomparavel pertencem-nos! Não leu Camões a Homero e Virgilio, Platão e Aristoteles, a Antiguidade toda? Não conhece Dante, o Ariosto e o Tasso, Garcilasso, Boscan, e sobretudo o mestre, Petrarcha o divino ? E não tem, na sua Natercia, uma Laura, para lhe abrir com sorrisos o livro apocalyptico do destino? Pois não aprendeu em Coimbra a sciencia dos tempos ? Falta-lhe, o quê? O genio? não. O saber? não. A arte ? não. Nem o amor lhe falta, para lhe illuminar as vigilias, dourando-lhe os horisontes da. vida... Assim tambem Portugal se interrogava, e assim respondia com egual confiança o destino. O momento era o mesmo, para o poeta e para a nação - a esperança, a confiança heroica ! Um desejo im 1 C. 1, 1. menso de se abalançar a grandes emprezas, de luctar, de mover-se, de expandir a seiva e o sangue ardente que lhes circulava nas veias. O rumo era incerto para os navegadores lançados no Oceano, e para o poeta abandonado aos embates da phantasia; e ambos acabaram a sua jornada n'um mesmo anno, a um mesmo tempo, 1580, afogados n'uma desgraça irman: Sem causa juntamente choro e rio: Esse momento de revelação definitiva, em que toda a realidade: amor, patria, vida, mundo, se esvaem em fumo; esse momento notado agora como um prenuncio apenas vago, inconsciente decerto, vem ainda longe. O crepusculo de agora é o da manhan: depois virá o da tarde com a sua invasão do trevas mortaes. Com o peito a ferver em enthusiasmo, Camões obtem, em 1547, que lhe transfiram o desterro para Ceuta. Ahi começára a marcar-se o destino de Portugal: por ahi começaria tambem a sua vida de soldado. Parte: Subo-me ao monte que Hercules Thebano Atacado no mar por piratas mouros, Camões fica ferido na refrega, perdendo um olho: Agora, experimentando a furia rara i Sonn. 9.—2 V. toda a Eleg. II e a Canção 11, autobiographica.- 8 Canção 11. |