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Tres annos (1547-50) de vida tormentosa em Marrocos, deram a Camões, o Cara-sem-olhos, uma reputação que o cognome de Diabo define claramente. Viu de perto a escóla bravia onde se formavam os soldados da India, os combates, as razzias ou almogaravias, a caça do leão:

De Ceita está o fortissimo lião,
Que cercado se ve dos cavalleiros
Que os campos vão correr de Tutuão;
Perseguem no co as lanças; e elle iroso,
Torvado hu pouco está, mas não medroso. 1

E quando voltou a Lisboa (1550) decidido a alistar-se na armada do vice-rei D. Affonso de Noronha para a India, vinha outro homem do que fôra, annos atraz, no instante em que, docemente agitada pelo amor, á sua alma surgiu em revelações de luz a imagem da Patria. Agora a vida apparecia-lhe na sua crueldade de torturas e combates, e não como um doce idyllio de amores. O seu immenso peito, no qual havia espaço para tanto, era já um vasto mar onde, agitadas, as ondas do temperamento combatiam furiosas. Acordado pelo amor, illuminado pelo patriotismo, começava a ser retemperado pela vida, para que, reunindo a prova á intuição «com um saber de experiencias feito» podésse condignamente realisar a sua façanha, depois da qual apenas lhe restaria

morrer.

Esperava ainda fixar-se em Lisboa na côrte do infante D. João, o Mecenas do tempo? Talvez; mas os zoilos e tambem o seu genio brigão impelliram

1 C. IV, 34.

n'o para destino diverso. N'esses tres annos que vão desde a chegada de Ceuta até á partida para a India, em Lisboa, conquista a alcunha de Trinca-fortes, frequentando «os soalheiros dos Escudeiros, de Alhos Vedros, do Barreiro e da rua Nova, em casa do Boticario», participando em todas as arruaças e partidas dos fidalgos que saíam á aventura de noute com lanternas pelas ruas, resando a via sacra e o officio das almas, cercados pelas maltas de rufiões escravos pretos ou mulatos.

Um choque d'essas tempestades levantadas pelo seu temperamento brigão de Diabo, teve-o preso em Lisboa um anno (1552-3), na cadeia do Tronco, pela cutilada que déra no Rocio em dia de Corpus. Embarcou afinal na armada de Fernão Alvares Cabral no dia de Ramos (24 de março) de 1553, indo na capitania, que era a S. Bento, a maior e melhor nau que então havia na carreira, depois de na prisão ter provavelmente refeito o espirito com os tres livros de Castanheda, publicados em 1551 e 52 e com a primeira Decada de Barros que saíu á luz n'este ultimo anno.

Estes livros vinham definir de um modo terminante as ambições, acaso ainda vagas, acordadas annos havia pelo espectaculo da serena e grave vastidão do Tejo.

II

(1553-1570)

Largou a armada: começou a viagem. Embarcado na sua nau, os Lusiadas, vinha-lhe á idéa o

passado, breve ainda, mas tormentoso; lembravase dos accidentes que tinham provocado os seus dous exilios: o primeiro em que a sua empreza se lhe revelára; o segundo em que palpára a vida, nos combates e prisões, ganhando a fama de brigão. Partia agora com o espirito agitado como o céo, onde as nuvens trazidas pelo sueste se encastellavam, dando-lhe uma côr plumbea, e ao mar uma rigidez negra sobre a qual principiavam a desfolhar-se os coruchéos alvacentos das ondas.

Que doido pensamento he o que sigo?
Apoz que vão cuidado vou correndo?
Sem ventura de mi! que não me entendo;
Nem o que callo sei; nem o que digo.

Pelejo com quem trata paz comigo,
De quem guerra me faz não me defendo.
De falsas esperanças que pretendo?

Quem de meu proprio mal me fez amigo? 1

O segredo d'essas contradicções é a preoccupação que o agita: só são placidos os espiritos vasios. Na ha tão quieto como um tumulo. Camões arde n'uma grande paixão. Amor? acção? gloria? Entrelaçando-se-lhe todas no peito, penetrando-se, fundindo-se, enroscam-se como nos ramos pendentes as trepadeiras emmaranhadas de uma floresta. E o vento que vem soprando do sueste assobia na cordagem:

Navego

Por alto mar com vento tam contrario

Que, se nam me ajudais, ei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo. 2

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As «Nimphas do Tejo e do Mondego» hão de ajudal-o. A sua nau corre de velas inchadas sobre o chão massiço do mar; mas os céos pardos estão prenhes de enygmas e ameaças. A fé vacilla-lhe, lembra-se do momento em que largavam do Restello-elle, ou Portugal?e da prophecia solemne que ouviu, na hora tragica da despedida:

Mas um velho daspeito venerando,
Que ficava nas prayas entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Tres vezes a cabeça descontente,
A voz pesada hum pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber so dexperiencias feyto,
Tais palavras tirou do experto peito:

«O' gloria de mandar! ó vaa cubiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!
O' fraudolento gosto que se atiça
Cua aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades nelles esprimentas!

Dura inquietação dalma e da vida,
Fonte de desemparos e adulterios,
Sagaz consumidora conhecida

De fazendas, de reinos e de imperios;
Chamam-te illustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vituperios;
Chamam-te Fama Gloria soberana,
Nomes com quem se o povo nescio engana!

A que novos desastres determinas
De levar estes reynos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?

Que promessas de reynos e de minas
Douro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que historias?
Que triumphos? que palmas? que victorias? 1

Depois o velho» perguntava, se ao pé de casa não haveria ismaelitas a combater, se era mister aventurarem-se ao mar? Porque se abandonára Arzilla (1547)? E acudiam-lhe ao pensamento as palavras do infante D. Pedro: que trocar Portugal pela Africa, era trocar uma boa capa por mau capello; lembrando-se de que já se trocára Portugal, já se abandonára a capa, e agora trocava-se a Africa pela India... A febre crescia á maneira que a miragem se alongava; e Portugal e elle, ambos lançados na vertigem da aventura, iam torturados cumprindo o seu destino:

O' maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas vella pôs en seco lenho;
Dino da eterna pena do profundo,
Se he justa a justa ley que sigo e tenho!
Nunca juyzo algum alto e profundo,
Nem cythara sonora ou vivo engenho,
Te dê por isso fama, nem memoria,
Mas comtigo se acabe o nome e gloria! 2

Com a intuição genial de poeta, Camões sentia a contradicção fundamental das cousas que põe em antinomia o heroismo com a fortuna, tornando o sacrificio condição necessaria da façanha. Sentia a grandeza do acto nacional, sentindo tambem como esse acto nos matava.

Quando abonançava o tempo, e nos horisontes encinzeirados da sua alma se abria uma larga

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