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ferro e luz, que a sua imaginação em chammas caldeava com ardor. Acudiam-lhe em tropel as lembranças, os quadros, as figuras, as viagens, os homens, as façanhas: e os Lusiadas desenrolavamse-lhe no horisonte do mar como tela magnifica, animando a natureza na sua paz incommensuravel.

O amor, synonymo de sacrificio, levando-o pela mão até aos confins do mundo, para lá lhe abrir o sacrario augusto da poesia de um povo, evaporava-se, desfazendo-se no ar, e, deixando-o embalsamado em fragrancias doces, arrebatava ainda a alma do poeta ao evocar na mente as figuras tragicas da sua comedia terrivel e magnifica. A mesma fonte de caridade humana, que se diz meiguice, brotava conjunctamente o sentimento patrio da virtude intemerata, da justiça immarcessivel; e o poeta, levantando o pensamento ás regiões olympicas da serenidade augusta, apparece como um Catão lusitano, vir bonus dicendi peritus, sem a cortezania italiana do Ariosto ou do Tasso, curvados deante dos principiculos de Este, como discipulos directos de Ovidio e Virgilio, prostrados deante dos! Cesares. Tal é a feliz consequencia da desgraça do poeta, e dos Lusiadas terem sido concebidos e executados no desterro, a sós com a natureza, e não pelo meio do estonteamento das côrtes. Nada ha tão revelador como o isolamento; nada tão perspicaz como o infortunio. Foi elle que dictou a Camões, mansinho, no lento escorrer das lagrimas, os segredos da alma portugueza.

Surgem-lhe na lembrança as figuras lendarias dos reis; e o poeta, ao pintal-os, toma a vara de um juiz e vae condemnando, com brandura é verdade, Pedro, o cruissimo:

Este, castigador foy reguroso
De latrocinios, mortes e adulterios;
Fazer nos maos cruezas, fero e yroso,
Erão os seus mais certos refrigerios.
As cidades guardando justiçoso
De todos os soberbos vituperios,
Mais ladrões castigando á morte deu
Que o vagabundo Alcides ou Theseu. 1

E' que a vingança da morte de Ignez de Castro desculpa a atrocidade; é que o caracter portuguez nos seus bons tempos, adorando a Força, ligava-lhe sempre, mais ou menos, a impressão do Terror. Quem houve mais terribil do que Albuquerque?

O grande capitão, que o fado ordena
Que com trabalhos gloria eterna merque,
Mais ha de ser hum brando companheiro
Pera os seus, que juiz cruel e inteiro.

Mas em tempo que fomes e asperezas,
Doenças, frechas e trovões ardentes,
A sazão e o lugar fazem cruezas
Nos soldados a tudo obedientes,
Parece de selvaticas brutezas,
De peitos inhumanos e insolentes,
Dar extremo suplicio pella culpa

Que a fraca humanidade e Amor desculpa.

Não será a culpa abominoso incesto,
Nem violento estupro em virgem pura,
Nem menos adulterio desonesto;
Mas cua escrava vil, lasciva e escura.
Se o peito, ou de cioso, ou de modesto,
Ou de usado a crueza fera e dura,
Cos seus hua ira insana não refrea,
Põe na fama alva noda negra e fea. 2

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Por isso a yra que o condemna, põe-a o poeta como sombra á fama que o mundo cerca. 1 E' mister que o heroe mantenha a grandeza d'alma, a serenidade olympica inimiga da colera, a humanidade mansa que não exclue a justiça. E o fundo celtico, ou lusitano, do genio de Camões vae até ao ponto de se mostrar benigno com a fraqueza de um rei que succedeu á ferocidade de outro, porque ambos foram victimas do amor. A sua caridade inexgotavel, se não absolve, perdôa:

Do justo e duro Pedro nasce o brando
(Vede da natureza o desconcerto!),
Remisso e sem cuidado algum, Fernando,
Que todo o Reino pôs em muito aperto;
Que vindo o Castelhano devastando
As terras sem defesa, esteve perto

De destruir-se o Reino totalmente;

Que hum fraco Rei faz fraca a forte gente. 2

Não lhe merece, porém, egual complacencia a condessa D. Thereza, que o amor tambem perdeu; mas é porque, levantando-se em armas contra o filho, a viuva de D. Henrique ameaçou afogar no berço a independencia nacional. A condemnação de Camões exprime, principalmente, o Inconsciente no patriotismo:

O' Progne crua! ó magica Medea !
Se em vossos proprios filhos vos vingais
Da maldade dos pais, da culpa alheia,
Olhay que inda Teresa peca mais.
Incontinencia ma, cubiça fea,
São as causas deste erro principais:
Scilla por hua mata o velho pay,
Esta por ambas contra o filho 3

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vay.

3 C. III, 31-32.

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Mas é clara e terminante a accusação da devassidão clerical, da baixeza fidalga, da sarabanda que o poeta sentia, na sua propria gruta solitaria, agitar-se ao longe com um zumbido surdo de in

sectos:

E vós outros que os nomes usurpais,
De mandados de Deos, como Thomé,
Dizey se sois mandados, como estais,
Sem yrdes a pregar a sancta fe?
Olhay que, se sois Sal, e vos danais
Na patria, onde Propheta ninguem he,
Com que se salgarão em nossos dias
(Infieis deixo) tantas Heresias?

1

Vede, Nimphas, que engenhos de senhores.
O vosso Tejo cria valerosos,

Que assi sabem prezar com tais favores
A quem os faz cantando gloriosos!
Que exemplos a futuros escriptores,
Pera espertar engenhos curiosos,
Pera porem as cousas em memoria
Que merecerem ter eterna gloria! 2

A sua lyra, diz o poeta candidamente, só canta quem lhe exalte o pensamento. E' feita de sinceridade:

Nem creais, Nimphas, nam que fama desse
A quem ao bem comum e do seu Rei
Anteposer seu proprio interesse,
Imigo da divina e humana ley:
Nenhum ambicioso, que quisesse
Subir a grandes cargos, cantarey,
So por poder com torpes exercicios
Usar mais largamente de seus vicios.

1 C. x, 119.-2 C. VII, 82.

Nenhum que use de seu poder bastante
Pera servir a seu desejo feio,

E que por comprazer ao vulgo errante
Se muda em mais figuras que Proteio;
Nem, Camenas, tambem cuideis que cante
Quem com habito honesto e grave veio
Por contentar o Rei no officio novo
A despir e roubar o pobre povo. 1

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E essa mesma Verdade do pensamento moral, transporta a o poeta para a historia o que conta é tudo sem mentir, puras verdades - e transparece ainda no realismo litterario das descripções. Vêse-lhe a energia na transfiguração animada das paisagens psychologicas, em que um estado mental, ou uma subjectivação analoga á dos tempos primitivos, faz palpitar a mudez das forças e dos elementos naturaes. E' o amor da Verdade tambem que, mantendo-lhe o sentimento da inteireza, o afasta das tentações perigosas do orgulho, dando-lhe aquella nota, genuinamente portugueza, da necessidade de obter, para o que se faz e se diz, a approvação do proximo.

Os dous annos (1556-1558) passados na thebaida de Macau, foram para Camões tão reveladores como o eremiterio de Manreza o foi para Santo Ignacio. Esses dous grandes hespanhoes da Renascença estavam ambos destinados a mostrar ao mundo os limites da capacidade do genio peninsular, explorando até ao extremo as duas linhas parallelas da vida interior e da vida exterior, do mysticismo e da acção, da obediencia e do heroismo... Qual acertou mais? Eterna pergunta formulada pelos homens!

Mas quando, naufrago, Camões errava pelos pantanos do Camboje, cantando como o psalmista

1 C. VII, 84-85.

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