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assômo de amor paternal exaltado, era órfã. E que doçura há na maneira por que no-lo descreve! Recordemos essa passagem:

«Ai, filha da minha alma, quando me passa pelo pensamento que te posso um dia achar doente!... Assim me sucedeu com tua mãe... Deixei-a uma vez tão satisfeita e alegre, e vai, quando voltei, a primeira pessoa que encontro diz-me à queima-roupa: - Venha, sr. João, venha, que já não vem sem tempo. Corra a casa, se ainda quere yer sua mulher... Foi como se recebesse uma descarga em cheio no peito... corri, e...

«A comoção impediu-o de continuar; disfarçou, como que envergonhado daquela fraqueza, beijando a filha outra vez.» (1)

Júlio Denis era inconscientemente arrastado a ferir, nas diversas passagens dos seus romances, a nota da orfandade. Era um pretexto para desabafar, confiando aos seus leitores, através de propositados disfarces, todo um estado psíquico que irresistivelmente o dominava.

Citemos ainda uma outra passagem: a scena do cemitério da Morgadinha dos Canaviais,

́(1) Júlio Denis, A Morgadinha dos Canaviais, ed. cit..` pág. 107.

quando a multidão, com o sr. João das Perdizes à frente-o truculento e avinhado morgado protestava contra os enterramentos fora das Igrejas, investiu com a sua gente contra o mausoléu que guardava os restos mortais da mãe de Madalena:

«O sr. Joãozinho, arrojando de si o chicote, tirou um machado das mãos de um homem que lhe ficava próximo, e deu alguns passos para o túmulo.

«Madalena colocou-se diante dêle.

«Já não está pálida; tinha nas faces o rubor, nos olhos o lampejar da indignação.

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Afaste-se, senhor! - bradou ela, esten-. dendo a mão para o ébrio, que parou a fitá-la com olhos espantados.

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Nem sequer pouse os pés nos degraus desta sepultura. Aqui repousa minha mãe. Atrás!

«A figura, o olhar, a voz, as palavras de Madalena exprimiam uma das resoluções enérgicas e potentes daquela índole simpática que aos afectos e branduras de mulher sabia combinar a firmeza e energia quási varonis.

«O morgado sentiu uma vaga consciência da sublimidade daquela scena, e ficou enleado.»

Tudo isto é humano e admissível, quando a filha tem as qualidades morais e a decisão de

carácter que Júlio Denis descreve em Madalena. Júlio Denis encarnava-se, naquele momento, na atitude decidida, corajosa e nobilitante da Morgadinha. Não era arriscar a vida pela vida de sua mãe; era, para èle, mais do que isso arriscá-la pela sua memória representada no túmulo que queria fazer respeitar do vandalismo daquela multidão desvairada.

Se quiséssemos coligir tôdas as impressões que o romancista confiou às suas novelas, aos seus contos e aos seus romances sobre a orfandade, tôdas as sensações que nos comunica dêsse doloroso estado de alma através das personagens que nos mostra órfás de mãe, todo o lirismo com que as aureola, teriamos de fazer bastantes repetições, mas mostrariamos, em toda a evidência, a intensidade de uma saudade que podemos classificar de excessiva.

Se Júlio Denis tivesse ligado os seus destinos à vida de uma mulher, não seria esta a nota principal, podemos mesmo dizer, dominante porque o é! - dos seus romances.

E porque não casou Júlio Denis?

Através da sua obra palpita esta aspiração a cada momento: nos seus poemas, nos seus contos e especialmente nos seus romances onde êle se representa apaixonado e noivo. O epílogo é sempre o casamento!

Mostra assim, e constantemente, a aspiração

máxima da sua vida. E, contudo, não chegou a decidir-se. Foi a tuberculose que o deteve.

Tôdas as suas inclinações amorosas não passaram, por isso, de devaneios a que não quis dar consistência por não poderem ter finalidade. Como rapaz comprazia-se em fazer madrigais as raparigas que o interessavam; mas, atrás do entusiasmo de momento, vinha o raciocínio. E quantas vezes pôde dominar-se! A doença era o espectro que a cada instante se levantava diante dos olhos, ávidos de esperanças!

Lembra-nos a passagem de uma carta escrita do Funchal a Custódio Passos, quando começavam a desfolhar-se as últimas ilusões da desejada cura, em que o romancista se refere ao casamento de um dos seus amigos:

«O Pôrto está eminentemente casamenteiro. Neste momento chegaram-me muitas novas matrimoniais. O José Carlos mandou-me dois cartões a dar parte do seu casamento. Meu primo noticiava-me que o dêle se efectuaria a 5 de Abril e, no mesmo dia, tinha lugar o do Albuquerque!

«Caíu pois aquele colosso que eu julgava inatacável! Baqueou uma das mais seguras colunas do celibato! A nossa tripeça descambou por o pé mais sólido! Afinal ninguém pode reputar-se imune. Que destino nos reservarão os fados!

«Eu, quando penso nas soluções que vão dando a êste grande problema da vida os nossos amigos, perco-me em longas meditações. >>

Não será imprudente julgar que nessas meditações se estabelecia a luta íntima entre o desejo de constituir família, e a repulsa que lhe devia causar a idea de se ver ámanhá em inteiro descalabro orgânico, a braços com a desgraça dos seus, sôbre que viria a pesar a hereditariedade mórbida que o deixou órfão aos 5 anos de idade e lhe arrebatou, no mesmo ano, dois irmãos! Como médico, deviam torturá-lo êsses trágicos pesadelos, que contrastavam com as suas mais íntimas ambições.

Foi como resultado de tudo isto que Júlio Denis se mostrou, talvez, um pouco leviano' nos

seus amores.

Quere-nos, porém, parecer que, mesmo nesse campo, ficou um pouco aquém do que é vulgar em gente moça de agora e até, por vezes, em gente de cabelos brancos... Diga-se isto em abôno da sua memória.

Êle retrata-se como volúvel em Daniel, em Carlos, em Henrique de Souzelas. Tirou de alguns devaneios amorosos que, por vezes, o entusiasmaram, estudos para os seus romances. Pecados da mocidade que, ainda assim, lhe deixarem remorsos pela vida fora, como mostraremos. Êsse aspecto sentimental do roman

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