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Serve, de triste lâmpada,
Humilde cruz (1).

«Há nesta vida amarga

Sortes assim...
Vive-se num martírio,
Morre-se emfim.

(1) Esta quadra é substituida por estas':

»>As criancinhas nuas,

Que estremeceu,

Já nem sequer se lembram

Do nome seu.

«No salgueiral vizinho,

Ao pôr do sol,
Vai-lhe carpir saudades
O rouxinol!

«Lágrimas... pobre campa!

Ai, não as tem!'

Só de manhã o orvalho

Rociá-la vem.

«Da solitária lua

A triste luz,

Grava-lhe, em vagas sombras,

Estranha cruz.

«E êle repousa, dorme...

Vive no céu!

Dorme esquecido e humilde
Como viveu.>>>

ΤΟ

Sem que memória fique
Para dizer:

A's gerações futuras

Nosso sofrer» (1).

«E calou-se. Todos pareciam respeitar aquele silêncio e fitavam em Valentim olhares de solícito interêsse.

«Laura foi quem primeiro rompeu êste prolongado silêncio.

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<< -E o resto?»>-disse ela, não desviando a vista de Valentim.

«Este estremeceu como se uma voz o despertasse dum sonho. Ergueu a cabeça e, còrando levemente, respondeu com aparente indiferença: <«<-O resto é curto, é uma súplica apenas». E acrescentou:

«Quem me escutar, se, um dia,

Ao vale for,

Reze sentida prece

Ao bom Reitor» (2).

(1) Êstes dois versos aparecem ligeiramente alterados na edição definitiva:

«A's gerações que passam

Nosso viver.>>

(2) É esta a última forma adoptada pelo autor:

«Quem me escutar, se, um dia,

Ao prado fôr,

Ore pelo descanso

Do bom Reitor.»

«Laura conservou-se pensativa depois que Valentim terminou a última estância.

«João Soares interrogou-o sôbre o autor daquela poesia.

«—Ignoro-o,»—respondeu Valentim; mas tendo-se, por acaso, os seus olhares encontrado com os de Laura, baixou os olhos com embaraço.

«<-Entendo»-murmurou esta para consigo. «Parece-me que atinei emfim com a verdadeira causa daquela tristeza. Veremos.

«A noite ia-se adiantando.

«D. Ana Soares retirara-se com suas irmãs e apenas se demoravam na sala Valentim, Laura e seu pai. Tinham descoberto a maneira de conciliar com os seus, os hábitos regulares das senhoras de Alvapenha. João Soares retirara-se um tanto para o lado a examinar umas cartas que recebêra de Lisboa naquela tarde, e mostrava-se absorvido na leitura.

«Laura e Valentim acharam-se, quási sós, na presença um do outro.»>

Paremos um pouco na transcrição. A poesia que acabamos de trasladar, ainda incompleta, mas já bastante perfeita, é uma das preferidas. por Júlio Denis. Aparece em mais de um dos seus apontamentos. A melancolia que a envolve é a sentida homenagem a um grande Reitor de Ovar, que foi uma das mais altas individuali

dades daquela vila, e ainda hoje tão esquecida do reconhecimento público como na época em que Júlio Denis por lá passou.

Esta ingratidão do povo vareiro à memória do pároco, que deixou atrás de si um rastro de santidade e de abnegação, impressionou o romancista. Ouvira contar, quer em casa de sua tia, quer na roda que freqüentava a recebedoria da terra, as suas altas virtudes e a disvelada e inteligente protecção que dera aos órfãos e aos pobres. Quando êle, velhinho, atravessava as ruas da vila, velhos e crianças ajoelhavam a beijar-lhe a mão. Do que lhe davam tirava apenas o indispensável para o seu viver frugal; o resto repartia-o pelos pobres e pelos enfermos.

Quando Júlio Denis ia à missa, aos domingos, visitava algumas vezes as ruínas da velha residência paroquial, hoje desaparecidas, e o modesto cemitério que lhe ficava ao lado, onde viu a campa humilde do Reitor, esquecida pelo desrespeito de todos. Foi êste abandono que o levou a escrever a composição poética que transcrevemos e foi esta tradição, ao lado do estudo directo de um outro bom sacerdote, o Cura Dias, que lhe deu o Reitor das Pupilas.

A poesia inédita que publicámos no capítulo II dêste volume-A oração do Reitor é ainda sugestionada pela tradição dêsse esquecido pároco, que se chamou padre João de Sequeira

Monterroso e Melo (1), fundador do Hospital de Ovar. De família ilustre, supomos que a mais aristocrática do concelho, todos ignoravam e êle mais do que ninguém os seus pergaminhos. Tôda a sua vida foi de sacrifício em favor dos seus paroquianos.

Júlio Denis, na carta a Cecília a que atrás fazemos alusão, descreve minuciosamente alguns aspectos da vila de Ovar..

«No caminho que eu freqüentemente seguia nestes meus passeios matutinos ha uma pequena ponte de pedra de dois arcos, por baixo da qual corre mansamente o rio da aldeia. Rio sem nome!... (2)

«Da ponte de que te falei seguia eu pela encosta duma pequena colina, debaixo de um continuado toldo de verdura...

«Numa planura em que terminava a colina, estava o cemitério da paróquia, um cemitério de aldeia; não to descrevo. Imagína-lo sem isso, não é verdade?

«Continuava-se com o cemitério um prado

(1) Informação do dr. José de Almeida.

(2) Sem nome, pois poucos o conhecem pelo rio da Senhora da Graça, ou simplesmente rio da Graça.

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