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coisa prestes a esquecer-lhe-«sabe já por acaso quem é a pessoa que veio morar para a quinta dos Cedros?

«E, preguntando, fitava os olhos no velho, com não disfarçada curiosidade.

«-É um senhor ainda moço que eu não conheço. Leva vida alegre e folgada ao que parece. É raro ver-se de dia; de noite então não faz se não tocar e cantar. Parece-me que escreve horas inteiras.

«Bem. Boa noite, Torcato. Não se esqueça de mandar soltar os cães.

<«<- Fique descansada V. Ex.a Muito boa noite, senhora D. Luísa.

«E ambos abandonaram a sala.»

Chama-se D. Luísa a mãe de Angelo e de Adelaide, sua irmã mais velha, de que nos ocuparemos dentro em breve.

Estes dois irmãos são aproveitados por Júlio Denis para o romance definitivo, embora com alterações importantes, como se verá. A sr.a D. Luísa é a continuadora de D. Ana Soares, do primeiro manuscrito, a senhora doente, mãe de Laura e espôsa do comerciante de Lisboa João Soares de Carvalho, de que não volta a ocupar-se. A sr.a D Luísa, que igualmente vem a desaparecer na Morgadinha dos Canaviais, é, nesta segunda fase, de mais elevada estirpe e de mais alta cultura. Contudo, nem

isso lhe valeu para passar à posteridade. Júlio Denis, por mais que nos pese dizê-lo, pois parece desmentir a bondade de que era dotado, condenou-a à morte antes de a apresentar em público.

Os leitores já adivinharam que a irmã de Angelo, que nestes apontamentos deixa de ser Laura para se chamar Adelaide, é a simpática Madalena da Morgadinha.

Que de transformações vai operando Júlio Denis com as suas personagens, até chegar a aperfeiçoá-las, adequando-as às scenas em que as enreda no romance definitivo! Há algumas que permanecem (1); há outras que vai substituindo em estudos sucessivos até alcançarem os requisitos indispensáveis ao desenrolar da acção.

Na pregunta feita a Torcato pela sr.a D. Luísa sôbre assunto a que se não volta a fazer alusão nos incompletos apontamentos, há uma referência bastante transparente a uma nova personagem do romance, o «senhor, ainda moço que leva vida alegre e folgada, ao que parece» e que veio morar para a quinta dos Cedros que, muito possivelmente, é a Casa de

(1) As copiadas de uma única pessoa não desaparecem em geral; as outras andam como que à procura de fixar-se.

Alvapenha. Torcato informou também que o tal senhor tocava e cantava de noite e escrevia horas inteiras.

Tudo isto é o esboço daquele que mais tarde devia ser Henrique de Souzelas.

Ora esta personagem é o próprio Júlio Denis, como no próximo capítulo demonstraremos. Contudo, no romance não vem indicada esta particularidade, que Torcato aqui nos denuncia, de que éle escrevia horas inteiras!-Lá o cantar e tocar pelas horas mortas da noite é disfarce com que Júlio Denis se quis esconder aos olhos dos críticos. Quando muito, cantarolava trechos de óperas do seu agrado (1), Mas não há dúvida de que passava a escrever horas inteiras. Escrevia por prazer ou, como êle dizia, por vício. E fê-lo com uma intensidade pasmosa quando veraneou na vila de Ovar, onde passava as noites a delinear romances e a tomar apontamentos que mais tarde cerziu na confecção dos seus livros.

E, pôsto isto, demos a palavra a Júlio Denis que, no manuscrito, fala das novas personagens nestes precisos termos:

«Mas com razão terá o leitor estranhado que

(1) Júlio Denis, As Pupilas do sr. Reitor, ed. cit. pág. 136.

tão sem cerimónia o tenhamos introduzido numa casa e feito assistir a algumas scenas da vida doméstica de uma família, sem prèviamente o apresentarmos.

«Não obstante, serão as principais personagens que teremos de encontrar no decurso desta narração.

«Passo, desde já, a emendar esta falta de método, o que farei o mais sucintamente que possa, por saber que, regra geral, não são bem recebidas estas notas (1) explicativas.

«Ela torna-se, contudo, indispensável.

«O palacete em cujo salão principal surpreendemos dormindo a sono sôlto o nosso conhecido Torcato (2), pertencia a João Mexia de Melo e Moita, conde de Aveleiras, o mais bemquisto proprietário da sua comarca. João de Alvito, ou, como êle próprio se assinava por uma inofensiva veleidade aristocrática, D. João de Alvito, era um homem de quarenta e tantos anos, ainda vigoroso e activo, de maneiras corteses, ânimo generoso e resoluções inabaláveis.

«De estatura elevada e de porte airoso, êle possuia as aparências de um verdadeiro fidalgo.

(1) Não se compreende a palavra do manuscrito. (2) A brincadeira de Angelo devia ser conseqüência desta fraqueza do velho servo.

«D. João de Alvito era legitimista, mais por tradição do que por crença, embora quisesse sustentar o contrário. Repugnava-lhe mudar de ideas políticas em que fôra educado, parecia-lhe uma quási apostasia para a qual lhe faltava o ânimo e que lhe reprovava com antecipação a consciência. Era, porém, do número daqueles que transigia com o estado actual dos negócios políticos, a ponto de aceitar, por vezes, uma candidatura às côrtes e prestar o juramento exigido, não sei se com reservas mentais.

«Como deputado, grangeara sempre merecidos créditos. Era um orador pouco vulgar e nunca negociára com o mandato, vendendo o seu voto para utilidade sua ou dos protegidos. Solícito em promover os interêsses locais do círculo que o elegêra, não tentou nunca antepor-lhes os interêsses gerais do país. Nem os governos nem a oposição contavam com êle, porque de um momento para outro era-lhe infiel por cons

ciência....

<«<Em família não erá menos exemplar. Quando o não chamavam à capital os trabalhos parlamentares recolhia-se à obscuridade da vida provinciana, todo absorvido no afecto da espôsa e na educação dos filhos que, em pessoa, dirigia.

«Ao apartar-se dêles borbulhavam-lhe as lá

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