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«O horror ao escândalo, eis o que caracteriza esta moral de Tartufo» (1).

Ao recordar estas passagens, desconhece-se Júlio Denis pela violência da linguagem; embora ela faça ressaltar a personalidade moral do romancista.

Muitas vezes preguntamos a razão determinante desta aspérrima crítica. ¿Seria apenas decidido pelos seus naturais sentimentos de justiça ? Talvez. Mas quere-nos parecer que deve ter influido em Júlio Denis, neste acesso de acrimónia, uma circunstância que passamos a relatar. As Pupilas e a Morgadinha foram romances começados a trabalhar em Ovar.

Como demonstraremos, Júlio Denis prendeu-se, em devaneio amoroso, à Guida das Pupilas, uma das filhas de Tomé Simões, o recebedor, em casa de quem passava muitas horas a conversar. A Guida era a amiga mais íntima de sua prima D. Maria Zagalo Gomes Coelho, com quem convivia a todos os momentos, pois era hóspede da mãe desta, D. Rosa Zagalo Gomes Coelho, sua tia.

Nas conversas em casa do recebedor Tomé Simões, e continuadas em casa de sua tia e de

(1) Júlio Denis, As Pupilas do sr. Reitor, ed. cit., pág. 237.

sua prima, havia de vir à balha a história trágica da loucura de uma irmã de Guida, ao tempo ainda viva, mas sequestrada ao convívio familiar, que se atribuia à acção maléfica dos missionários.

Júlio Denis, como homem bom e de princípios inabaláveis de justiça, devia ser naturalmente inimigo dos fanatizadores daquele meio. Mas ousamos acrescentar que a influência das duas famílias e o caso da loucura da irmã de Guida devem ter forçado involuntàriamente a mão do romancista a sair da sua compostura habitual e castigar os tais missionários com maior azedume. É, pelo menos, uma suposição bastante plausível.

Devemos contudo acentuar que Júlio Denis detestou sempre a hipocrisia. São bem significativas estas palavras que recortamos da Família inglesa, escrita antes das Pupilas:

«Acabara de facto o carnaval. Expirara essa época votada à folia e à loucura sem rebuços e abria-se agora a da penitência e dos sermões. «Em qual das duas há mais verdades, mascaradas sob falsas aparências, deixo aos moralistas decidir.»>

Só as crenças na sua pureza, no que elas têm de mais elevado, prendiam o seu espírito de eleição.

A sua aversão aos fanatismos e intolerâncias, não podiam prejudicar, de forma alguma, a sua tendência a sublimar as almas boas que, à sombra da religião, se elevam em doces e suaves misticismos.

As crenças são, como as flores, excelentes pretextos para a poesia. E Júlio Denis, tanto em prosa como em verso, mostra sempre o seu

temperamento de poeta. O mais puro lirismo floresce em cada página da sua obra.

Nos seus manuscritos há repetidas passagens dedicadas aos bons reitores, crentes e caritativos, de que deu o modêlo na insinuante personagem das Pupilas. A poesia O bom Reitor aparece em vários dos seus manuscritos. Estamos em crer que a considerava uma das suas melhores composições. E é-o, de facto.

Numa outra poesia, inédita, A Oração do Reitor, perdida entre os seus apontamentos, faz-se a apologia de um pastor de almas que é um símbolo de perfeições e de bondade.

Não nos furtamos ao prazer de a transcrever para aqui. É como que um prisma a reflectir a religiosidade tal como êle a sonhava, como êle à queria, como ela esplendia a dentro das suas crenças:

«A noite era de inverno, húmida, escura e fria.
Soprava nos pinhais furiosa a ventania,
Imitando o bramir dum tormentoso mar.
Os sinos do mosteiro ouviam-se vibrar.

E, contudo, ninguém subira ao Campanário.
A alameda do ádro e o morro do Calvário,
Onde se ergue imponente o sacro emblema
Rasgando o negro véu, enchiam-se de luz
Quando do céu pesado o raio fuzilava:
Luz sinistra, fatal, como de ardente lava.

a Cruz

A aldeia repousava em plácido dormir;
Sono que não perturba esta ânsia do porvir
Que a vida nos consome, aos filhos das cidades ;
Éste sonhar sem fim, estas vagas saudades
Sempre, sempre a fugir dum fantasiado bem
Que à nossa cabeceira acalentar-nos vem.
A al leia repousava. As cinzas da lareira
Onde há pouco inda ardia a paternal fogueira
Cujo grato calor as horas do serão

Ajudara a passar, frias, extintas são.

Porém na Residência um homem inda vela,
Pois que uma froixa luz, através da janela,

Parece estar dizendo ao povo que adormece:

- «Dorme, que o teu pastor de velar não se esquece!»

O pároco velava. As venerandas cas

Pendentes sobre um livro. Em orações cristãs
Iam-se, muita vez, assim, noites inteiras...
As contas do rosário eram-lhe companheiras.
Julgava-se êle então, o bondoso Reitor,
Mais próximo do céu, mais junto do Senhor!
E, Moisés do seu povo, ouvindo mais de perto
A palavra da lei que, no árido deserto,
O devia guiar por grandes provações,
Sentia então mais fé nas suas orações!
A estância humilde e nua do velho cenobita
Parece receber misteriosa visita

Sempre que, como agora, embebecido e só,
ê, de David, um psalmo, um lamento de Job,

Páginas imortais dos Santos Evangelhos!
Pois houve quem o viu, caindo de joelhos,
Erguer, cheio de ardor, os olhos para o céu,
Como se, descerrando o impenetrável véu,

Que, aos olhos dos mortais, cobre o mistério augusto,
Lho deixasse encarar sem turbação nem custo.
Vivera a fazer bem. Envelhecera assim.
Eram-lhe distracções as flores do jardim,
O ensino da infància, a esmola aos indigentes
E o salutar conselho aos jovens e imprudentes.
Logo pela manhã, mal sentia o arrebol,
Ia-se para o monte, a ver nascer o sol,

E voltava a almoçar mais leve do que fôra,
Que a esmola o acompanhava e é grande gastadora.
Não sabia, o bom velho, há muito resistir...
Cedia-lhe sorrindo... Abençoado sorrir!
Sempre sóbrio e frugal, o santo sacerdote,
Quisera, muita vez, entesourar um dote
Para as filhas de Deus, órfãs de pai e mãe!
Socorria a chorar! Pois chorava também,
Sempre que chorar via, ou de prazer ou pena.
Em tudo reflectia aquela alma serêna,
Como lago tranquilo, ao tombar do escarcéu,
As nuveus reproduz que perpassam no céu...
Com que amor acolhia alguma alma perdida
Que o vinha procurar, um dia, arrependida!
Com que sentida fé lhe falava da Cruz,
Prometendo o perdão em nome de Jesus!

Quando à missa do dia, ao povo que o escutava, Com voz trémula já, da religião falava,

Na prática singela havia tal unção

Que vinham gravar-se fundas, no coração,
As palavras de amor, de. paz, de tolerância.
E o povo procurava ouví-lo com instância.

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