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UNIVERSITY OF MICHIGAN LIBRARIES

Um peixe ?!

<«<- Sem tirar nem pôr, escamas, cauda, barbatanas, finalmente, tudo.

« Ah! Barbatanas também ?
«Também barbatanas.
«E da cinta para cima?

«Da cinta para cima era a mulher mais bonita que se tem visto no mundo.

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Isso era arte do diabo!

- E então tinha cabelo e dentes e.

«Era uma mulher perfeita; não lhes estou eu a dizer ?

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«<- Vou-me por êsse mundo!

<< - Olhem os meus pecados!

«E então falava, ti' Cabaça?

«Pois dela é que vinha a tal carpideira e

os tais choros que disse.

«

Ah! Estou para morrer.

« Eu se visse tal estarrecia (1).

«

E que dizia ela, ti' Cabaça?

Chorava e carpia-se que metia mesmo dó. Tôda a sua pena era tirarem-na do mar. O que ela pedia é que a soltassem da rêde e

(1) Têrmo regional. Camilo emprega-o no Brasileiro dos Prazins, pág. 168. Todo êste diálogo é cheio de locuções regionais que Júlio Denis arquivou cuidadosa

mente.

que a deixassem voltar para a água, pois só lá é que podia viver.

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« - E ela falava assim como a gente, ti' Cabaça?

« Pois então? E com uma voz e duma maneira que fazia mesmo enternecer os mais empedernidos.» — E o narrador, forçando a voz a um desafinado falsete, para lhe dar a mais feminil modelação de que ela era susceptível, tentou, pouco modestamente, reproduzir o timbre fascinador da sereia, dizendo, conforme a tradição que fielmente conservara:

<«<-Ai, soltai-me, soltai-me, -ག ་ ་ ་ dizia ela, deixai-me voltar para o mar, que, se me levais para terra, eu morrerei logo. Pobre rapariga!

-)

«- Pobre peixe, emendou outro.

«<--E porque há de ser peixe e não rapariga?
«- O quê? O quê? Aquilo tem lá álma?
Eu sei lá se ela tem alma ?

Que dizes tu, homem, nem que fosse

gente cristã!

«-Mas ela que falava...

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Isso é por artes do mafarrico.

« velho Cabaça prosseguiu, depois de terminada esta acidental discussão psicológica:

«- Houve ainda assim quem quisesse tirá-la para sêco, mas tais foram os seus queixumes, que o arrais, comovido, mandou soltá-la da rêde.

-E era muito grande, ti' Cabaça ?
-Assim como uma corvina... taluda.
- Está feito!

-))

-Logo que se viu livre» continuou o orador«fugiu nadando, como um peixe que era, mas a cantar e com tanta aquela (1) que nem música de anjos do céu pode ser tão linda. Era um cantar de tal casta, que tôda a companha se deixou ficar a escutá-lo, sem se lhe importar com a sardinha que já estava na areia. As cachopas (2) da vila, que tinham vindo aos caminhos para o Carregal, não queriam saber de outra coisa que não fôsse ouvir aquela voz. E assim ficaram todos postos emquanto ela se pôde ouvir e só depois se deitaram ao trabalho, ainda que com bem pouca alma.

«Foi então que um pescador velho disse ser aquilo uma sereia e que bem mal tinham feito em a deixar fugir, pois de nada sabia tão perigoso para os marinheiros como encontrá-las no mar largo ou escutá-las muito tempo.

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-Então o que fazem elas, ti' Cabaça?»preguntou um dos pescadores mais jovens e que de todos parecia, também o mais interessado pela narração.

Com aqueles cantos-respondeu o inter

(1) Forma de dizer muito empregada na região. (2) Têrmo muito usado em tôda a Beira-Ria.

pelado, «pelos modos atordoam a gente, que fica assim como com uma bebedeira. Não se faz mais coisa com coisa, não se atina com o govêrno do leme, nem com o das velas ou dos remos. Neste comenos elas levantam o mar e um homem vai para os peixinhos que é mesmo uma consolação.

«-E nunca mais voltou à costa essa... êsse peixe ?»-preguntou ainda o mesmo pescador.

«-Nunca mais até hoje. Êle anda sempre muito ao largo e só quando alguma trovoada forte o escorraça é que foge para as costas.

«Seguiram-se vários comentários sôbre a plausibilidade do caso. O tio Cabaça contara-o com tal acento de convicção, e era tão pouco dado a gracejos o velho pescador, que todo o auditório se sentiu inclinado a admitir o carácter verídico do facto extraordinário que lhe acabara de ser narrado.

«Depois de muito conversar, dispersou-se finalmente o grupo, aí pelo cerrar da noite, e a taberna da tia Salgada viu aumentar o número dos hóspedes e o das bôcas que faziam justiça, por palavras e obras, às excelências do seu Bairrada.

«Na praia apenas ficaram dois homens.

«Um era o tio Cabaça que, sentado, com as mãos entrelaçadas por diante dos joelhos e o cachimbo pendente dos lábios crestados, olhava

para as ondas que se sucediam na areia e parecia absorvido em profunda meditação.

«Este hábito de scismar gera-o a continuada contemplação das scenas marítimas.

«O homem que vive e envelhece a escutar aquela música das ondas, que do alvorecer ao crepúsculo é embalado por elas, o que alternadamente as conheceu afáveis e irritadas, que delas recebeu carícias e ameaças e as viu ora suavemente iluminadas pelo luar, ora reflectindo a luz sinistra dos relâmpagos, surpreende-se muitas vezes nestas silenciosas e inexprimíveis divagações do espírito, tão freqüentes nos poe

tas.

«Em todos os portos de mar se encontram, ao fim da tarde, dêsses velhos scismadores que, aparentemente atentos nas formas em que se condensa no ar o fumo do seu cachimbo, trazem por bem longe o pensamento, talvez que a colhêr saudades nas recordações daquele viver incerto de marinheiro, para cujas laboriosas peripécias os anos os invalidaram já.

«O velho Cabaça principiava a pensar nessa época próxima, na qual lhe havia de fraquejar o braço que ainda movia vigorosamente o remo; nesses longos dias, em que, preso à terra, se veria obrigado a ocupar-se num trabalho de mulheres, reparando as rêdes da companha.

«Aquele futuro tranquilo, reservado à sua velhice, entristecia-o; como, nos tempos de

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