Imagens das páginas
PDF
ePub

Tudo quanto dizia aprendia de cór,

Mas, solícito mestre, ensino inda melhor

Do que o ouvido ali, na cadeira do templo,

Pregava alto e bom som com seu sublime exemplo.

Ora naquela noite, que parecia sem fim,
Com fé ardente e pura, o velho orava assim:

«Senhor, que, generoso,
Tôdas as aves nutres,
Os pérfidos abutres

E os brandos rouxinois !
Que juntas nos espaços,
Ás nuvens das procelas,
Os raios das estrêlas,
A luz de imensos sóis !

«Que à borda dos abismos
Fazes brotar a planta;

Da flor que nos encanta
A áspide fatal;
E a plácida corrente

Tornas, num simples gesto,
Em vórtice fremente;

E a brisa em vendaval!

«Senhor! quem pode, ousado,

Sondar os teus mistérios?

Sombras dos cemitérios,
Acaso o podereis?
Mas nós, cegos ainda,
Na sombra intensa, espêssa,

Curvemos a cabeça

A tuas santas leis !

«Por isso, se no mundo,
Olharmos, surpreendidos,
Os bons aos maus unidos,

Unido o mal ao bem...

Que os lábios se não manchem

Na imprecação maldita!

É lei que está escrita

Em letras de ouro, além...

«Além, por essa abóbada,
Alta, sublime, imensa,
Onde a alma do que pensa
Se perde a meditar...
Abramos, pois, os braços
A todos igualmente.

A Deus, a Deus sòmente,
Compete êsse extremar.»>

Nesta altura, o poeta conta que os sons de um alaúde, dedilhado na alameda vizinha (1), «<vieram interromper a oração do bom Reitor». Uma voz, «<repassada de saudade», entoava então uma canção de amor. Não podemos acompanhar, nesta parte, o manuscrito, por vezes incompleto e, por vezes, ilegível. A canção é dirigida a uma «pobre flor»:

«Pobre flor que, nos campos nascida,
Entre moitas de humildes violetas,
Tão saudósa no campo vegetas,

Sem um raio de fúlgido sol!

(1) A alameda que ficava junto da velha residência

de Ovar e a que atrás faz alusão.

Pobre flor, solitária, ignorada,
Só a estrela do céu te namora,
Só te beija o rócio da aurora
E te fala o subtil rouxinol!

Depois, pede-lhe que escute a voz do amor:

E

«Ai, se um dia escutares, atenta,
Essa voz, ó violeta da aldeia,
Essa voz que embriaga, que enleia,
Qual suave harmonia do céu,
Nova luz se fará na tua alma...

E, chamando-te à vida os sentidos,

Te abrirá os países floridos

Que inda envolve um tenuíssimo véu».

segue neste tom.

O pároco, escutando estas endeixas, continua o poeta, ficou por algum tempo silencioso e apreensivo.

Mas a canção cessou e o velho Reitor segue com a prece:

Senhor! Bemdito sejas
Na tua majestade!
Por toda a imensidade
Teu nome escrito jaz!...
E tu, soberba humana,
Lembra-te que és poeira...
E, na hora derradeira,

A sê-lo voltarás...

Por aqui terminamos a transcrição da incompleta poesia, uma das mais belas, da sua colec

ção. Deve ter sido escrita em Ovar. A canção amorosa, pela maneira como é dirigida, anda em tôrno do vulto lânguido da suave Guida, que Júlio Denis foi sacudir do sono tranquilo da adolescência.

Este poemeto mostra o aspecto religioso de Júlio Denis. Êle queria que as suas crenças tivessem a guiá-las ministros assim: raríssimos espécimes da legião eclesiástica. Poucos, em nossas terras, lhe poderiam hoje servir de modêlo. Dos vivos que conhecemos — e nem tão poucos são!-desempenhando encargos paroquiais, apenas um que pastoreia almas numa pequena aldeia do concelho de Ovar podia enfileirar ao lado da sua galeria de «bons Reitores»!

Quem sabe? Foi talvez êsse contraste, que êle havia de encontrar pela vida fora, entre o padre-modêlo que descreve e os muitos que, por certo, conheceu e que, a cada momento, desmentem a doutrina que prègam, que lhe abalou a sua religiosidade.

O facto é que as suas crenças foram esmorecendo como flores que se fossem desfolhando.

Em 22 de Maio de 1870 escreve a Custódio Passos:

«Uma das coisas que me afinam é a exclamação de certa gente que não concebe que possa

viver de certa forma. Ora é boa! Também não concebo os mistérios do catolicismo e cá me vou conformando com êles, segundo posso, isto é, não pensando nisso». (1)

A dúvida, já esboçada na citação de pág. 16, torna-se aqui mais nítida.

Em 27 do mesmo mês, já entra pelo sarcasmo quando, ao mesmo Passos, escreve estas significativas palavras a propósito da situação Saldanha:

«As indulgências de Roma vão chover sôbre nós e o número de Sés, longe de se reduzir, como queria o mação do J. Luciano, vai quadruplicar, para maior glória e esplendor dessa coisa complicada que se chama Igreja Católica, Apostólica, Romana». (2)

E por aqui nos ficamos em citações a êste respeito. As crenças de Júlio Denis, mais fortes a princípio do que no declinar da sua saúde, foram sempre elevadas e altruistas. O seu Deus era a síntese sublimada das melhores virtudes, entre as quais ocupa o mais alto lugar a bon

(1) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., vol. II, pág. 244.

(2) Idem, ibidem, pág. 246.

« AnteriorContinuar »