Tudo quanto dizia aprendia de cór, Mas, solícito mestre, ensino inda melhor Do que o ouvido ali, na cadeira do templo, Pregava alto e bom som com seu sublime exemplo. Ora naquela noite, que parecia sem fim, «Senhor, que, generoso, E os brandos rouxinois ! «Que à borda dos abismos Da flor que nos encanta Tornas, num simples gesto, E a brisa em vendaval! «Senhor! quem pode, ousado, Sondar os teus mistérios? Sombras dos cemitérios, Curvemos a cabeça A tuas santas leis ! «Por isso, se no mundo, Unido o mal ao bem... Que os lábios se não manchem Na imprecação maldita! É lei que está escrita Em letras de ouro, além... «Além, por essa abóbada, A Deus, a Deus sòmente, Nesta altura, o poeta conta que os sons de um alaúde, dedilhado na alameda vizinha (1), «<vieram interromper a oração do bom Reitor». Uma voz, «<repassada de saudade», entoava então uma canção de amor. Não podemos acompanhar, nesta parte, o manuscrito, por vezes incompleto e, por vezes, ilegível. A canção é dirigida a uma «pobre flor»: «Pobre flor que, nos campos nascida, Sem um raio de fúlgido sol! (1) A alameda que ficava junto da velha residência de Ovar e a que atrás faz alusão. Pobre flor, solitária, ignorada, Depois, pede-lhe que escute a voz do amor: E «Ai, se um dia escutares, atenta, E, chamando-te à vida os sentidos, Te abrirá os países floridos Que inda envolve um tenuíssimo véu». segue neste tom. O pároco, escutando estas endeixas, continua o poeta, ficou por algum tempo silencioso e apreensivo. Mas a canção cessou e o velho Reitor segue com a prece: Senhor! Bemdito sejas A sê-lo voltarás... Por aqui terminamos a transcrição da incompleta poesia, uma das mais belas, da sua colec ção. Deve ter sido escrita em Ovar. A canção amorosa, pela maneira como é dirigida, anda em tôrno do vulto lânguido da suave Guida, que Júlio Denis foi sacudir do sono tranquilo da adolescência. Este poemeto mostra o aspecto religioso de Júlio Denis. Êle queria que as suas crenças tivessem a guiá-las ministros assim: raríssimos espécimes da legião eclesiástica. Poucos, em nossas terras, lhe poderiam hoje servir de modêlo. Dos vivos que conhecemos — e nem tão poucos são!-desempenhando encargos paroquiais, apenas um que pastoreia almas numa pequena aldeia do concelho de Ovar podia enfileirar ao lado da sua galeria de «bons Reitores»! Quem sabe? Foi talvez êsse contraste, que êle havia de encontrar pela vida fora, entre o padre-modêlo que descreve e os muitos que, por certo, conheceu e que, a cada momento, desmentem a doutrina que prègam, que lhe abalou a sua religiosidade. O facto é que as suas crenças foram esmorecendo como flores que se fossem desfolhando. Em 22 de Maio de 1870 escreve a Custódio Passos: «Uma das coisas que me afinam é a exclamação de certa gente que não concebe que possa viver de certa forma. Ora é boa! Também não concebo os mistérios do catolicismo e cá me vou conformando com êles, segundo posso, isto é, não pensando nisso». (1) A dúvida, já esboçada na citação de pág. 16, torna-se aqui mais nítida. Em 27 do mesmo mês, já entra pelo sarcasmo quando, ao mesmo Passos, escreve estas significativas palavras a propósito da situação Saldanha: «As indulgências de Roma vão chover sôbre nós e o número de Sés, longe de se reduzir, como queria o mação do J. Luciano, vai quadruplicar, para maior glória e esplendor dessa coisa complicada que se chama Igreja Católica, Apostólica, Romana». (2) E por aqui nos ficamos em citações a êste respeito. As crenças de Júlio Denis, mais fortes a princípio do que no declinar da sua saúde, foram sempre elevadas e altruistas. O seu Deus era a síntese sublimada das melhores virtudes, entre as quais ocupa o mais alto lugar a bon (1) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., vol. II, pág. 244. (2) Idem, ibidem, pág. 246. |