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XIII

«DANIEL» E JÚLIO DENIS

J

ÚLIO Denis mostra a sua adolescência em Carlos Whitestone, disfarça-se, como lisboeta neurasténico, em Henrique de Souzelas, e apresenta-se, tal como é, no Daniel das Pupilas. Nem esconde a profissão nem a sua orientação de médico novo, cheio de noções absolutamente desconhecidas do velho cirurgião João Semana, de que falaremos em capítulo especial.

Sigamos, por alguns instantes, a simpática personagem do novo doutor no momento da chegada a casa de seu pai, o honrado José das Dornas, com quem, dentro em breve, entraremos em conhecimento. Diz Júlio Denis:

«O grande acontecimento do dia realizou-se emfim.

«Pelas cinco horas da tarde parava à porta de José das Dornas a mais vigorosa e anafada das suas éguas e dela se desmontava Daniel em trajos de jornada e com a clássica caixa de lata ao tiracolo, sinal evidente da formatura completa.»

A jornada que Júlio Denis fêz a cavalo, do Pôrto até Ovar, para casa de sua tia D. Rosa Zagalo Gomes Coelho, serviu para a descrição que nos dá, na Morgadinha dos Canaviais, a propósito de Henrique de Souzelas.

Aqui aparece-nos a desmontar à porta de seu pai, sem se preocupar com a fadiga da viagem de uns quarenta e cinco quilómetros bem puxados. Ele não veio montado numa anafada égua de José das Dornas, que a não possuia, mas sim numa vigorosa mula do almocreve Silva, do lugar da Ponte Nova, da vila de Ovar (1). Esta informação condiz mais com a descrição da chegada de Henrique de Souzelas, em que o diálogo com o almocreve deve estar de acordo com o modo de sentir do cavaleiro,

(1) Informação do dr. José de Almeida. Esperamos que êste nosso amigo conclua uma monografia regional sôbre as Pupilas e a Morgadinha, que tem entre mãos, e que trará novos subsídios aos admiradores da obra de Júlio Denis.

que bem pode ter feito a jornada em um só dia, como era vulgar nessa época. Saía-se da rua Direita de Vila Nova de Gaia, da antiga estalagem das Pinheiras, em frente à então e ainda hoje farmácia Macedo, e seguia-se à beira-mar até à Vila.

Continua Júlio Denis:

«A vizinhança tôda afluiu curiosa às portas e às janelas para ver o facultativo novo e julgar dêle pelas primeiras impressões. Era uma colecção de olhos arregalados e bôcas abertas, a convidar o lápis de um artista.

«< - Ainda é tão novinho!- dizia uma mulher.

«<- Não sei o que me parece um cirurgião sem barba--observava um velho filosòficamente. Parece um estrangeiro!

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«- Lá bonito é êle! - notava uma rapariga. « - Olhem que boniteza! Um homem quere-se um homem! -- redarguiu um alentado rapagão, ao ouví-la.»

Reparemos um pouco neste diálogo. Não é a descrição do novo médico que impressiona, pois ajusta-se ao tipo esbelto em que Júlio Denis sempre se personifica; mas vê-se por êle que a vizinhança o não conheceu, quando é certo que êle não deixava de vir a férias. Surge como um estranho, o que é pouco de aceitar.

Devemos mesmo concluir que é êste um dos pequenos defeitos do romance, que se repete em outras passagens. Citaremos apenas duas. Em uma delas pretende o romancista desculpar-se. É aquela em que Pedro e Daniel vão visitar a noiva de Pedro, a Clara.

«— Ide, ide, rapazes - observou José das Dornas. - Vais ver uma guapa cachopa, Daniel. Mas, é verdade, tu conhece-la... É uma filha do Meadas.

« Ah!... sim... tenho uma idea.

«Cúmpre-me confessar que Daniel não tinha tal idea das filhas do Meadas. Emquanto esteve no Pôrto, e até nos curtos intervalos de férias, que passara na terra, viveu êle muito estranho à vida do campo, para se recordar ainda das alcunhas, pelas quais, na aldeia, mais geralmente são conhecidas as famílias, do que ainda por os verdadeiros nomes e sobrenomes.»>

Ora esta desculpa é que nos não satisfaz. Em férias, ligado continuamente à família, nas conversas com o pai e com o irmão, não é crível que o nome destas raparigas, das mais jeitosas do lugar, tivesse esquecido a Daniel.

Mas o facto ainda é mais para estranhar na scena da esfolhada que Júlio Denis descreve nas Pupilas com uma verdade flagrante. É preciso ter presenceado estas festas rurais na

quela região, à luz baça dos lampeões e das candeias, - hoje desastradamente substituidos em algumas eiras e arrumadas pelos candieiros de acetilene · para ver quanta verdade há na simplicidade com que o romancista no-las evoca ! A esfolhada que lhe serve de tipo, aquela que êle trasladou com todo o seu ingénuo colorido para as páginas das Pupilas, foi a que presenceou em casa de sua tia D. Rosa Gomes Coelho, de há muito esperada pelo romancista (1), e a que presidiu o alegre lavrador José Travanca, o José das Dornas do romance «homem mais alegre» ! - na frase sugestiva de D. Rosa para Antero de Figueiredo.

Pois bem, na esfolhada que Júlio Denis descreve nas Pupilas, Daniel, a-pesar-de ser da casa, filho de lavrador, vir a férias nas épocas das esfolhadas, ignora a operação simples de descamisar espigas! É Clara que lha ensina:

« Que desastrado! - dizia Clara - Nesse andar, tem que fazer.

« - Então como é que se arranja esta cousa? -Assim, ora repare. Pega-se em um

«

prego...

«- Mas que é do prego?

(1) Cartas a Anitas. Capítulo IX, carta VIII (Vol. I).

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