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XIV

J

«JOÃO SEMANA»

OÃO Semana destaca-se entre tôdas as personagens de Júlio Denis como

a mais real, a mais vivida de tôda a sua imensa galeria.

Júlio Denis, que copiou sempre do natural, nunca levou tão longe a perfeição de escritor realista como na descrição dêsse bondoso cirurgião, cujo nome perpetuou como símbolo do médico de aldeia. Nada teve que alterar; mas nem por isso são menos belas as páginas imorredoiras em que a figura do velho cirurgião perpassa, ora contando anedotas, ora troçando das inovações médicas para que não encontrava aplicação na sua prática clínica, ora elevando a sua arte às alturas de uma religião, sacrificando-se pelos doentes, dando aos pobres O que lhe pagavam os abastados e tendo para

todos, aquelas palavras de confôrto que só os bons sabem dispensar aos desalentados da vida. Ler a história de João Semana - e ela vem completa nas Pupilas-é ler o panegírico de

um santo.

Ás vezes entrava em casa com remorsos: a colheita das visitas não lhe dera o bastante para os pobres. Quantas vezes sua espôsa -- porque o velho cirurgião era casado, embora Júlio Denis afirme o contrário, -lhe não censurou o seu excessivo perdularismo!

-Há de chegar para todos!-objectava. E voltava no dia seguinte para a rude faina da clínica, no decidido propósito de se não emendar.

O João Semana das Pupilas é o retrato fiel do cirurgião João José da Silveira que, ao tempo da estada de Júlio Denis em Ovar, exercia a profissão médica, com grande sucesso, naquela região.

Hoje ninguém o põe em dúvida. Apenas o professor Ricardo Jorge faz bem cabidos reparos à completa identificação. Exprime-se nestes precisos termos:

«A fusão do tipo do romance e do tipo real não é, todavia, completa. Quando Gomes Coelho estanceou em Ovar e esteriotipou o clínico que levava a sua alegria salvadora com o remédio e o óbulo à choça dos indigentes, João

Silveira não era octogenário nem sequer velho. como João Semana.» (1)

João José da Silveira nasceu no dia 20 de Fevereiro de 1813 (2). Tinha, portanto, apenas cinquenta anos quando, em 1863, Júlio Denis esteve em Ovar. O sr. padre Manuel Lírio pôde, porém, conseguir-nos a fotografia de um grupo de família tirado por essa época (3). João da Silveira era, ao tempo, um homem forte, espadaúdo, mas precòcemente encanecido. O cabelo é todo branco e contrasta com o de sua espôsa e de uma filhita, que completam o grupo em que êle se encontra. É ainda curiosa a fotografia, porque o considerado cirurgiãoapoia a sua mão direita no indispensável guarda-sol.

Júlio Denis julgou-o, por certo, muito mais. velho e no romance acrescentou-lhe ainda alguns. anos mais, talvez no propósito de demonstrar que naquela vida afadigada, mas saudável, se podia chegar aos oitenta anos.

De facto, João José da Silveira faleceu no dia 29 de Novembro de 1896, tendo, portanto, 83

(1) Ricardo Jorge, loc. cit., II artigo.

(2) Padre Manuel Lírio, Almanaque de Ovar, de 1913. (3) Cinco ou seis anos depois.

anos de idade. Foi um bom prognóstico de longevidade, o de Júlio Denis!

Devemos acrescentar que, por testemunhos da família e mesmo antes de alcançarmos a fotografia que nos foi amàvelmente fornecida, já sabíamos que João José da Silveira tinha encanecido muito novo.

Acrescenta ainda o professor Ricardo Jorge:

«Na série balzaquiana preemina também uma personalidade médica, o dr. Bénassis, do Médecin de Campagne. Parece-me natural supor que Gomes Coelho, manifestamente conhecedor da literatura inglesa e francesa, tivesse lido o romance do mestre dos romancistas, e que é na verdade um dos melhores florões da sua arte genial. E não será arriscado pensar que, além do modêlo vivo de Ovar, tivesse sentido o influxo do modêlo escrito de Balzac, o que nada desfaz na perfeita originalidade de Júlio Denis que, como Camilo, era senhor das suas ficções e criações.

«A bondade e a generosidade do médico de aldeia português são as mesmas do francês; -quando se chega a êste estado de santidade profissional não há diferenças. Tive um condiscípulo, António de Sousa Figueiredo, que numa vila da Beira-Baixa lhes seguiu as pisadas; em tôda a sua vida nunca mandou conta a ninguém, da mesa ou da cama nunca deixou de levantar-se

à chamada de quem quere que fôsse, e socorria da sua algibeira os mais necessitados; - morreu pobre e abençoado.

«O regresso do médico de Júlio Denis a penates, naquele trecho bucólico que Max. deLemos amoràvelmente reproduz, corresponde ao do médico de Balzac: Á medida que Bénassis avançava, vinham à porta as crianças, as mulheres e os homens que tinham findo o trabalho do dia; uns tiravam os barretes, outros davam-lhe as boas-tardes, os rapazitos pulavam aos gritos à volta do cavalo, como se a bondade do animal lhes fôsse tão proverbial como a do dono. A crítica francesa preocupou-se também com a identificação do Médecin de Campagne, mas, só há pouco, graças a Gabriel Faure, se fixou definitivamente o padrão. Era o dr. Amable Rome, médico de Voreppe, perto da Grande Chartreuse, aldeia onde Balzac estanceou, retratando-lhe as paisa-gens no romance. O caso de Ovar está em perfeito paralelismo literário com o de Voreppe».

Esta interessantíssima nota que, por todos os motivos, deviamos arquivar, pretende demonstrar a influência do romance de Balzac no delineamento da figura de João Semana. Ora Bénassis, embora tenha com o cirurgião português o ponto de contacto que o professor Ri

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