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família, e não possuia as qualidades postas em realce em tôrno da personagem do Reitor das Pupilas. De resto, Júlio Denis marca bem o lugar do padre em uma outra carta, que já citámos, para o mesmo Custódio Passos. É de 11 de Maio de 1863. Nela diz o romancista:

«O médico é ainda aqui o antigo médico que se denuncia às primeiras palavras; o merceeiro apresenta todos os caracteres próprios da espécie; o padre é o padre tipo...»

Quere dizer: Júlio Denis esboça aqui três das principais personagens das Pupilas: De João José da da Silveira tira João Semana, do merceeiro António Baptista de Almeida Pereira faz surgir João da Esquina e do padre Cura Dias sai, embora melhorado pelas influências que dissemos, o sr. Reitor.

Nem se compreende que êle fizesse uma excepção para o padre, quando em Ovar também havia o padre tipo, indo buscar um leigo e pai de raparigas que, por sinal, muito particularmente o interessaram.

A respeito deste interêsse é que não pode haver dúvidas. Júlio Denis prendeu-se de amores por D. Ana Simões, que êle trasladou para o romance com o nome de Margarida.

Por mais de uma vez nos referimos aos amores reais do romancista pela filha de Tomé Si

mões. Já relatámos que esta senhora guardara, até três dias antes de morrer, cartas de Júlio Denis, que se perderam para sempre na fogueira onde ela as mandou lançar. Foi o conhecimento que tivemos dêste facto que nos levou a iniciar o trabalho que hoje damos à estampa. Com as cartas estava aquela prenda que a boa velhinha consentiu que ficasse sendo pertença de sua filha D. Emília e em que a legenda fala pelas cartas que o fogo purificou:

Venceste meu coração

Com subtil arte de amor...

Nem essas cartas-preciosos documentos, pois não há no espólio literário do grande romancista uma única carta de amor-podiam ter outro destino! Já o dissemos ao iniciar êste estudo. Seria cruel trazê-las a público. Representavam um amor que, de há muito, entrara numa esfera mais elevada. Era para D. Ana Simões como que uma religião! Na sua alma vivera sempre essa saudade e tanto que, cinquenta anos volvidos, e na hora extrema da vida, não se esqueceu de pedir a sua filha que apagasse os vestígios que ela podia deixar na terra. Esse culto, que uma vida inteira santificara, tinha de morrer com ela, e o fogo do seu lar, da casa onde conhecera Júlio Denis, onde os seus olhares se encon

traram quando os animava o brilho da mocidade, devia consumir transformar essas cartas na cinza anónima que o vento arrasta e a terra integra nas suas transformações cons

tantes.

E a nossa imaginação segue a filha a abrir a gavêta e a procurar a preciosa colecção. A prenda, o coração de madre-pérola, estava ao lado. Desapertou as cartas que se encontravam juntas a um Almanaque de lembranças com o retrato de Júlio Denis, para que o fogo as devorasse mais rapidamente, e seguiu para a lareira. Sem uma hesitação, cumprindo as ordens recebidas, os olhos humedecidos por estranhas sensações, lançou ao lume essas cartas palavras de amor que alguém escrevera há cinqüenta anos e que ainda naquela hora foram relembradas.

E ficou-se a olhar, absorta, aquela chama em que parecia haver crepitações de estrelas.

Em tôrno da fogueira deviam ter-se sentado, nesse momento, velhos conhecidos de sua mãe: o sr. Reitor, o José das Dornas, o velho João Semana... Todos a aquecerem-se àquele fogo, como outrora, na vida do romance, andaram presos da boa alma de Margarida.

A um canto da lareira, muito conchegadas uma à outra, também estiveram duas crianças, com os olhos presos naquela chama, cantando numa velha toada da aldeia:

«Vão procurar a cabrinha...
Ninguém a pôde encontrar ;
Mas um anjo de àsas brancas
Viram aos céus a voar...»>

E emquanto o fogo consumia os restos de um drama que raros pressentiram e cuja intensidade ninguém adivinhou, dois adolescentes, Daniel e Margarida, devem ter passado, como sombras, pelo quarto onde se encontrava, semi-agonizante, a santa velhinha, a levar-lhe o confôrto de um sonho que... nunca teve realidade.

E antes de cair na inconsciência, prelúdio confuso do Além, e que não tardou a visitá-la, juntou, por certo, as mãos para murmurar a última prece pelo descanso eterno daquele que nunca o seu coração esqueceu... (1)

D. Ana Simões atravessou a vida inteira presa a essa recordação amorosa. Só casou (2) quando se convenceu que Júlio Denis para sempre a tinha esquecido. A morte do romancista não sufocou essa saudade, nascida em dias que passaram como um meteoro de raro brilho pelo céu da sua mocidade. Com

(1) Tinha 74 anos.

(2) O casamento foi arranjado por seu padrinho, o Cura Dias, com um seu parente, Manuel Pereira Dias.

ela viveu sempre! Enviuvou, e essa recordação talvez então ainda revivesse mais intensamente nas horas tristes do seu isolamento. Quantas vezes essas cartas foram relidas a ocultas, como páginas de um livro de orações e para confôrto de uma sentimentalidade de rara e elevada contextura!

Júlio Denis soube bem retratar essa doce Margarida! Ela não guardou a recordação de Daniel apenas no intervalo que vai da infância à completa adolescência. Seria pouco. Guardou-a por tôda a vida e com uma intensidade e com um carinho que é todo o romance vivido de uma extraordinária alma de mulher.

E agora falemos de sua irmã, da Clara do

romance.

A respeito da identificação desta personagem há também bastante que dizer. Seja-nos, porém, permitida uma prévia digressão acêrca da família de Margarida.

Tomé Simões de Rèsende, natural de Chão-de-Maçãs, veio para Ovar como carpinteiro. Passou em seguida a mestre de obras, tendo desempenhado êsse cargo junto da Câmara Municipal, e conseguiu, por fim, mercê de influências políticas, ser recebedor de décimas no concelho. Ele mesmo cultivou essas influências. Conheceu de perto políticos de predomínio, porque, antes do caminho-de-ferro, muitos

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