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xava por isso Carlos de possuir um generoso e compassivo coração, alma sensível a todos os infortúnios, olhos a que a piedade não permitia serem estranhas as lágrimas.

«Se, por acções mal refreadas, por palavras irreflectidas, as fazia também verter, era êle o primeiro a acusar-se, a compadecer-se, a procurar enxugá-las por tôda a qualidade de sacrifícios».

Carlos é o Júlio Denis dos vinte anos.

Os chamados dotes do coração, atestam-no, como vimos, todos os seus biógrafos, possuia-os Júlio Denis em elevado grau e da mais fina têmpera. Basta reler as transcrições que atrás fizemos e em que as suas qualidades afectivas são postas em justo relevo.

Um pouco estouvado talvez, pois raros deixam de o ser, por anomalia, nessa idade, muitas vezes sentiu o remorso das suas leviandades.

É cheia de interêsse a seguinte nota psicográfica que lêmos, atribuida a Carlos, mas que é bem o seu modo de sentir:

«O sangue dos vinte anos fazia doudejar aquela cabeça; os instintos generosos faziam o tormento daquele coração, porque se uma, em momento de exaltação, conseguia romper com as generosas repugnâncias do outro, a reacção

era infalível e êste, mais tarde, a obrigava a arrepender-se, descobrindo, e exagerando até as nem sempre remediáveis conseqüências dos seus desvarios e caprichos». (1),

Que de verdade há nesta observação de um adolescente de bom fundo moral!

Carlos e Júlio Denis ajustam-se inteiramente nesta dualidade de sentimentos, que, passados os arrebatamentos dos primeiros anos, entram definitivamente em equilíbrio pelo predomínio de um sôbre o outro. Em Carlos há sempre a prevalência da generosidade sôbre os desvarios. É o que ressalta também do estudo biográfico de Júlio Denis.

Uma última referência à psicologia de Carlos. Um dia, Jenny, a sua irmã querida, viu-o arremessar de si, com manifesto enfado, um livro que estava lendo. Era um volume das obras de Byron, que Júlio Denis, diga-se de passagem, compulsava repetidas vezes.

«- Que é isso?-preguntou Jenny, sorrin do. Que má vontade é essa hoje contra um autor que tanto aprecias?

«

<< --- Impacienta-me às vezes êste poeta lord, para te falar sinceramente. Há tanta amargura

(1) Júlio Denis, Uma Família inglesa, ed. cit., pág. 19.

e tanto sarcasmo em algumas destas páginas que, pouco a pouco, nos fazemos maus, depois de uma aturada leitura dêsses admiráveis poemas. É sublime, mas é desconsolador. Leio-o com a cabeça atordoada, mas com o coração constrangido.» (1).

Esta apreciação, tão cheia de verdade, é a apologia daquela bondade que é a característica dominante do modo de ser psíquico de Júlio Denis.

O que deixamos escrito demonstra bem que o romancista se autobiografou na personagem do protagonista do seu romance.

Mas há mais provas a aduzir.

Já noutro lugar nos referimos às relações de Júlio Denis com seu pai, que os temperamentos distanciavam. Eram sinceramente amigos e dedicados; contudo, não tinham a intimidade das mútuas confidências. Havia gostos, predilecções e modos de ser que os obrigava a reservas nas suas relações de todos os dias. O romancista exprime-o de uma maneira perfeita na Família inglesa. Somente as referências são feitas a propósito de Mr. Richard Whitestone e de Carlos:

«Entre Carlos Whitestone e o pai existia um

(1) Júlio Denis, Uma Família inglesa, ed. cit., pág. 255.

cordial e puro afecto, ainda que disfarçado, em ambos êles, sob aparências de frieza e de reserva, da mais genuina índole britânica.

«Raras vezes se procuravam os dois e sempre que, nas ocasiões ordinárias, se viam juntos, poucas palavras trocavam. Quando mais sôlta se desenvolvia a loquacidade de Mr. Richard, na presença do filho, era ao saborear os últimos cálices, depois do jantar de família; mas ainda então, a conversa quási se reduzia a uma espécie de extenso e variado monólogo recitado por aquele e interrompido por êste, apenos com algumas frases de assentimento, em que predominavam os Yess, ao mesmo tempo. que os lábios se armavam de um sorriso de complacência - nem sempre segura fiança de atenção».

Em seguida, faz Júlio Denis o estudo psicológico do protagonista do romance:

«Carlos respeitava o pai, amava-o até com extremos capazes de lhe inspirarem os maiores sacrifícios, e contudo evitava-o, como se, junto dêle, se não achasse à vontade. E não achava, de facto.

«Possuia Carlos um dêstes génios que não suportam constrangimentos; ou hão de romper com êles, ou evitá-los.

«Calava-se, onde não podia abandonar-se

aos caprichos de uma conversa fútil; entristecia onde lhe fôssem estranhadas as expansões de uma alegria infundada, de um dêsses irresistíveis júbilos de criança que, como tal, em juvenilidades se revela. Dessem-lhe a liberdade de poder ser estouvado, vê-lo-iam talvez sisudo; mas, forçado a isto, tornava-se sombrio e de mau humor».

De Mr. Richard diz o romancista:

«Êste, de seu lado, não amava menos extremosamente o filho; para as verduras da mocidade era indulgente como, em tempos passados, desejara e precisara que fôssem também consigo; e Deus sabe que esforços lhe custavam até êstes sisudos ares de convenção, tão opostos ao fundo de desafogada jovialidade do seu carácter e que não conseguiam dissipar o sorriso que tinha como que esteriotipado nos lábios»> (1).

Tôda esta descrição está de acordo com as informações que chegaram até nós das relações íntimas de Júlio Denis com seu pai. É uma reprodução trasladada para as duas personagens do romance, da vida familiar do escritor.

(1) Júlio Denis, Uma Familia inglesa, ed, cit., pág. 20.

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