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Adelaide, julgo que foi êste o nome que Joana lhe deu, é uma rapariga de vinte anos incompletos».

Dêstes dois trechos deduz-se que as personagens que transitam pelas páginas dos dois romances andaram, em primitivo projecto, ligadas na mesma obra.

D. Dorotea, a fidalga de impertinente prosápia, para quem a vida consistia apenas nos amarelecidos pergaminhos de sua casa e na tradição dos que a educaram em tão elevadas luzes genealógicas, não figura, viva, em nenhum dos dois romances.

Contudo a ela se refere o romancista na Morgadinha dos Canaviais, como se pode verificar no seguinte trecho:

«A Morgada dos Canaviais, madrinha de Madalena, e de quem viera a esta o nome de Morgadinha, pelo qual mais conhecida era na aldeia, havia, ao morrer, instituido um legado a favor de Augusto, então criança, com a condição dêle abraçar a vida eclesiástica.» (1)

Júlio Denis detestava apresentar personagens

(1) Júlio Denis, A Morgadinha dos Canaviais, ed. cit., pág. 86.

que lhe desagradassem. Pelo que consta dos manuscritos citados, aquela D. Dorotea não era da sua simpatia. Pô-la de parte.

Em compensação, parece ter utilizado a sobrinha para criar o tipo de Madalena. Dá-lhe neste manuscrito o nome por que a chamavam --Adelaide (1).

Há ainda outras referências no romance A Morgadinha dos Canaviais, à velha Morgada:

«A casa e quinta dos Canaviais, desabitadas depois da morte da velha Morgada, madrinha de Madalena...» (2)

Logo na primeira conversa de Madalena com Henrique de Souzelas vem esta passagem:

– É que eu sou realmente a Morgadinha dos Canaviais. Quero dizer, minha madrinha vivia na quinta dos Canaviais, uma quinta que fica daqui perto. Era uma senhora velha,

(1) Era, como dissemos, D. Maria Adelaide. Quando Bento Pertunhas lê a correspondência na Morgadinha, diz: D. Madalena Adelaide de... Vê-se que no romance definitivo ainda aparece, ao menos uma vez, o nome Adelaide (Júlio Denis A Morgadinha dos Canaviais, ed. cit., pág. 48.)

(2) Júlio Denis, A Morgadinha dos Canaviais, ed. cit., vol. II, pág. 170.

rica (1), elegante (2) e muito caprichosa: chamavam-lhe todos a Morgada dos Canaviais. Tomou-me ela afeição e sempre que passeasse, me havia de levar consigo; daí começarem a chamar-me, de pequena, a Morgadinha. Quando ela morreu deixou-me tudo quanto possuia; nesse legado entrava a quinta dos Canaviais, de que sou proprietária ainda.

«Foi uma confirmação do título que já desde criança me tinham dado; e para todos sou aqui a Morgadinha, título na verdade pouco elegante e que tão mau conceito fêz conceber ao primo Henrique da possuïdora dêle.»

Júlio Denis não desperdiçou êste trabalho. Ficou sendo a história pregressa das personagens que haviam de movimentar-se na acção do romance, preferindo a evocação do que escreveu no primeiro manuscrito ao que vem no segundo. É curioso que nos apareça, no relato dêste inédito, como médico da sr. Morgada o nosso conhecido cirurgião João Semana, das Pupilas, a fazer-lhe uma cura psicoterápica, como é de

(1) Júlio Denis restitui-lhe a riqueza post mortem, o que não deve ter dado grande resultado à sn." Morgada. Mas assim foi necessário ao romance.

(2) Não era pròpriamente elegante a referida D. Arcângela, mas, a-pesar dos seus muitos anos, ainda procurava alindar-se.

uso dizer-se hoje. Ora João Semana não é, na obra definitiva, das relações próximas ou remotas da Morgadinha.

A criada Joana, que, no desenrolar da scena das Pupilas, tem um importantíssimo papel, também se não descortina nas páginas do outro romance. Quere dizer, nesta fase de estudo, que foi, por certo, passada em Ovar, os dois romances seguiam parelhas. A princípio confundidos, depois separados, como demonstraremos. Para ambos trouxe dali precioso material. Nasceram gémeos nas noites em que Júlio Denis passava horas esquecidas, em casa de sua tia, D. Rosa Zagalo, a tomar notas, a aproveitar descrições tiradas do natural e a escrever projectos de composições futuras. Separou-os depois; mas nêles se divisa a mesma origem. Daremos apenas um exemplo.

Nas Pupilas não aparece a sr.a Morgada, mas há uma alusão à sua preocupação mórbida. Vem disfarçada no diálogo da criada Joana com o velho João Semana, quando êle, por aquele «meio dia de verão, ardente, asfixiante, calcinador», chega a casa da sua volta da manhã pelos arrabaldes da vila. A sr.a Joana entendia que o patrão devia descansar um pouco, deixando para mais tarde a continuação da sua faina clínica:

«<-- Ainda se fosse para outra parte, não

digo que não, concluiu a sr.a Joana; mas para casa da D. Leocádia!... Eu já sei o que querem dizer aquelas pressas. A D. Leocádia, esta manhã, provavelmente, abriu a bôca três vezes e espirrou duas e, por isso, imagina já que está a morrer. Louvado seja Deus, nunca vi quem tenha mais mêdo de adoecer! Uma coisa assim! Não é senhora de meter um bocado de pão na bôca, sem preguntar ao cirurgião se lhe poderá fazer mal. Pois não se lembra daquela vez que o mandou chamar, porque tinha deixado, de noite, por esquecimento, uma açucena no quarto e pela manhã julgou que estava envenenada?» (1).

Confrontem-se as duas passagens. Semelham-se por tal forma que bem podemos garantir o que temos afirmado sôbre a origem comum e primitiva união dos dois romances: as Pupilas e a Morgadinha.

Não sabemos qual dos dois incompletos manuscritos a que acabamos de referir nosseria o primeiro a ser elaborado. No segundo aparece, pela primeira vez, o esbôço da figura da Morgadinha, mas também nêle se fala de João Semana e da criada Joana, personagens das

(1) Júlio Denis, As Pupilas do sr. Reitor, ed. cit., pág. 103.

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