Imagens das páginas
PDF
ePub

Fernandes Costa, cuja crítica à obra de Júlio Denis largamente apreciámos, diz que

«...o viver doméstico entenebrecido por sucessivos lutos, apertando entre os sobreviventes os laços afectivos, actuou molemente na sua alma delicada e deu-lhe aquele tom constante de resignação, de bondade, de doçura e de melancolia que em tôdas as suas obras transpira.» (1)

Pinheiro Chagas refere-se, num dos seus folhetins do Diário de Notícias, às

... elevadas qualidades do seu espírito, da sua inexcedível modéstia e do seu talento, um dos mais robustos e principalmente um dos mais simpáticos da nossa literatura.» (2)

Sampaio Bruno dá uma nota curiosa da sua psicologia neste interessante período:

Tímido, minado por uma doença assassina, na melancolia da sua alma a bondade leva-o a essa pacificação interior que as religiões pro

(1) Fernandes Costa, loc. cit., pág. 202.

(2) Pinheiro Chagas, Diário de Notícias, Outubro de 1872.

curaram na humildade que Schopenhauer define como a santidade na vida». (1)

Eça de Queirós aprecia, em justas palavras que atrás arquivámos (2), o aspecto moral e psíquico de Júlio Denis com inteira verdade e justiça.

que

Os leitores devem preguntar a razão de trazermos para aqui todos êstes comentários concordantes sobre o carácter de eleição de Júlio Denis, a sua bondade, a sua fina sensibilidade, a sua melancolia, a sua simplicidade. É quisemos chamar em nosso auxílio depoïmentos de escritores e biógrafos do seu tempo, alguns dos quais privaram com o romancista, para confirmarem o que pode deduzir-se directamente da sua obra publicada e inédita, das suas personagens, do desenrolar das scenas dos romances, dos seus delicados comentários psicológicos, das suas notas íntimas.

Quando se pretende profundar a psicologia de um autor não bastam as apreciações deduzidas dos seus trabalhos. É indispensável colhêr dos que o conheceram de perto e com êle

(1) José Pereira de Sampaio (Bruno), Branco e Negro, 13 de Agosto de 1896.

(2) Vol. I, capítulo VII, A sua morte, pág. 117.

privaram, ou ainda dos que escreveram na mesma época, as opiniões que dêle formavam. Do escritor e da sua obra falámos em outro lugar. Aqui é a sua personalidade íntima que nos interessa: o seu carácter, as suas qualidades, as suas predilecções e, até, os seus defeitos. Queremos conhecê-lo sob todos êstes aspectos; por isso todos os subsídios nos são úteis.

Por outro lado, já dissemos num dos capítulos do primeiro volume (1) o que era, Júlio Denis adentro da sua família. Dêsse estudo terão os leitores deduzido os elevados sentimentos do romancista na intimidade do seu lar.

Há um ponto que, marcando a nota primacial da sua afectividade familiar, vamos abordar de novo, procurando interpretá-lo: a enternecida saudade que Júlio Denis dedica à memória de sua mãe e que constantemente chama às páginas dos seus romances e às estrofes das suas poesias.

A doce e terna melancolia em que envolve, a cada passo, a recordação dessa perda prematura, e que perdurou por tôda a vida, é um pouco a conseqüência de não ter conseguido estabilizar a sua sentimentalidade em tôrno de. uma mulher a quem se prendesse por uma afeição séria e definitiva.

(1) Vol. I, cap. VIII, A Família de Júlio Denis, pág. 123.

Não queremos dizer que, se Júlio Denis, por exemplo, tivesse casado, esqueceria a dedicação tributada à memória de sua mãe; mas ousamos afirmar que, se êle tivesse constituido um novo lar, essa íntima afectividade que volteja, em tôda a sua obra, apegada à desventura que tão cedo o feriu, teria tomado, em grande parte, uma nova direcção. São factos da vida corrente e a que Freud daria uma explicação na súa pouco simpática e, por vezes, exagerada doutrina da pan-sexualidade.

É um facto averiguado que as crianças do sexo feminino se sentem mais intensamente atraídas para os pais e que, pelo contrário, os filhos, nas primeiras idades, se mostram mais inclinados para as mães. E é de notar, embora Freud não insista nesta circunstância, que, em geral, da parte dos pais se dá a correspondência recíproca. As fôrças impulsionadoras das crianças vivem, ainda que muito esbatidas, na esfera afectiva dos adultos. O complexo de Edipo, que Freud foi buscar à maravilhosa tragédia de Sophocles, talvez a mais bela da antiguidade não é, em absoluto, unilateral. Bem entendido que a intensidade afectiva é muito diferente da criança para o adulto; mas a tendência hetero-sexual manifestada nesse jogo de predilecções em que Freud assenta as bases da sua teoria filosófica, não é de todo corrigida com a idade. Por isso, não admira que o cho

[ocr errors]

aos

que afectivo da perda prematura da mãe, na idade em que Júlio Denis a perdeu cinco anos-isto é, no período em que essa afeição é um mixto de variados e ignorados atractivos, deixasse vestígios que perdurassem e até se avigorassem com o tempo. E que êle. É não separou dêsse complexo sentimental aquela parte que devia orientar-se num sentido clara

mente amoroso.

Aceite-se ou não esta interpretação psicoanalítica, o facto é que, através de tôda a sua obra, Júlio Denis acentua essa nota do amor filial de uma maneira particularmente constante e insistente. Não é só nas personagens em que se representa (Carlos, Henrique de Souzelas e Daniel são órfãos de mãe); é também nas que lhe estão mais chegadas e que trata com mais carinho nos seus romances. A Cecília, da Família inglesa, a Margarida, das Pupilas, a Madalena, da Morgadinha são igualmente órfãs de mãe.

O Augusto, do romance A Morgadinha, que, nos dois manuscritos que o precederam, primeiros esboços donde veio a saír o romance definitivo, tinha a mãe viva, aparece-nos, depois, órfão e essa qualidade é posta em relêvo pelo romancista.

Ainda no mesmo romance, a infeliz Ermelinda, a vítima do fanatismo dos missionários, que o pai, o simpático Cancela, castiga num

« AnteriorContinuar »