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neira evitar. Um padre-nosso a S. Marçal para que nos livre do fogo; outro a S.ta Luzia milagrosa para que nos defenda da cegueira; outro a S. Brás para nos proteger das doenças da garganta; um padre-nosso por todos os que andam sôbre as águas do mar; outro por os pobres sem abrigo nem alimento; outro pelos órfãos; outro pelos doentes; um pelos bons, outro pelos maus; um pelos vivos, outro pelos mortos; um pelos justos, outro pelas almas do purgatório; não hesitando mesmo a sua clemência a transpor as portas do inferno e pedir também a remissão dos condenados; - emfim, depois desta enumeração, um último padre-nosso compreendia todos aqueles não mencionados, por esquecidos, que pudessem necessitar das suas orações. >>

No romance definitivo, estas duas personagens fundem-se na tia Dorotea, que Júlio Denis descreve com as mesmas côres e predicados junto da criada Maria de Jesus, que já existe no manuscrito, mas com o nome de Antónia. A scena que transcrevemos dos padre-nossos vem publicada, quási sem alteração, no romance definitivo (1).

(1) Júlio Denis, A Morgadinha dos Canaviais, ed. cit., pág. 24,

A existência das duas irmãs na casa de Alvapenha deu ensejo ao romancista a descrições cheias de verdade e de interêsse que, afinal, desprezou por ter de reduzir a uma só as duas curiosas personagens:

«D. Genoveva, mais velha três anos que sua irmã, era a dispenseira e superintendente dos negócios caseiros. D. Quitéria (1) ocupava-se das contas e direcção dos contratos monetários, arrecadação de rendas, etc., etc.

«Elas tinham uma fortuna sofrível que, não obstante as respectivas omissões que o seu procurador lhes fazia, bastava de sobra para elas, cujas necessidades eram limitadas.

«Havia quem tivesse já dado a entender a estas senhoras quão mal administrada lhe andava a fortuna nas mãos daquele homem... que sabia fazer render os seus serviços.

«A êstes avisos razoáveis as boas irmãs respondiam sorrindo:

- Deixá-lo, deixá-lo. Nós estamos costumadas com êle e não nos poderíamos entender

com outro.

(1) Ás vezes também a trata por D. Jerónima.

Nós dar-lhe hêmos sempre o nome de D. Quitéria por ser o mais repetido e aparecer, a breve trecho, em substituição do de D. Jerónima que, por certo, lhe não soou bem ao ouvido, no decorrer das descrições,

«Nestes caracteres o hábito impera como senhor despótico.

«A sociedade habitual das boas senhoras era, como já disse, a sua criada Antónia; tipo de criada velha bastante comum, para dispensar descrição. Nesta preponderava um pouco o elemento malicioso e murmurador, sempre vantajosamente combatido pelo espírito tolerantemente conciliador de suas amas, que a repreendiam com severidade.

«Os negócios de lavoura andavam a cargo de um jovial hortelão (1) que, de quando em quando, subia às salas a divertir as senhoras de Alvapenha com as suas rústicas franquezas e simplórias observações.

«Além disto, apenas recebiam como visitas alguns, poucos, vizinhos, entre os quais olhavam como valido um modesto rapaz de vinte anos, futuro ministro do altar, para o que se habilitava no Pôrto...»

Nesta passagem se deliniam já as figuras da criada Maria de Jesus e de Augusto, do romance definitivo. Este, que nos apontamentos a que nos estamos referindo tem o nome de

(1) Vemos neste hortelão o José Travanca, que serviu de modelo nas Pupilas ao José das Dornas e era o lavrador da casa da tia de Júlio Denis. Dêle falaremos mais adiante.

Valentim, é apresentado de uma forma diferente daquela em que mais tarde nos aparece. Foi das personagens mais trabalhadas de todo o elenco da Morgadinha. É assim descrito

no manuscrito:

«Tinham há pouco acabado de almoçar as sr.as de Alvapenha e preparavam-se para se votarem à labutação da casa, quando Antónia, com a roça na cinta, entrou na sala tossindo, como quem preparava a voz para dar uma novidade.

«Uma continuada convivência tinha habilitado as suas amas a decifrar a significação dêstes modos de expressão da criada: era uma semiótica (1) muito do seu conhecimento. Por isso D. Genoveva, que, naquele momento, fechava o armário onde arrecadara o açucareiro, a manteigueira e o bule, voltou-se para a recêm-chegada, dirigindo-lhe um interrogatório:

« - Então que temos?

« Antónia tossiu de novo, como para se ver livre dum importuno catarro que ameaçava interrompê-la no meio da novidade e explicou: Sabem quem chegou?

«D. Genoveva encolheu os ombros em resposta.

(1) Júlio Denis não se esquece da sua medicina.

«- Ora! Pois não se lembram? Não sabem

que estamos em Julho?

«-E que tem isso?

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Pois em Julho quem é que chega ? É o verão, — disse da sala próxima a voz de D. Quitéria, que escutara a conversa.

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O verão?! observou a criada meio espinhada. Bem digo eu! Ó senhoras, pois na ver

dade...

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- Vá, vá, disse D. Genoveva, que não gostava de enigmas. - Deixe-se disso. Se quere dizer, diga. Se não, trate da sua vida que eu tenho mais que fazer...

- Chegou o sr. Valentim. Ora quem havia de ser! As senhoras às vezes...

«Esta nova efectivamente parecia de interêsse para as duas irmãs. D. Genoveva, que não concedeu grande atenção até aí à criada, voltou-se agora risonha para ela.

<<-Ah! Chegou? Quando?

«Esta manhã, disse-mo o padeiro, que o viu passar.

«D. Quitéria também, entrou na sala a pre

guntar com carinhosa solicitude:

«-E virá bom, não sabe?

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«-Bem vê a senhora que eu não lhe pus

ainda ôlho. Digo o que me contaram,

«- Pobre rapaz! - observou D. Genoveva. Aquele é um coração de pomba, é um bóm-serás, como se contam poucos.

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