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LITTERATURA E BELLAS-ARTES

O ARCHITECTO JOÃO DE CASTILHO

(Mais uma sua carta inedita)

No primeiro volume do nosso Diccionario dos Architectos, publicámos bastantes cartas ineditas do notavel architecto João de Castilho, de quem se ufana de descender o sr. visconde de Castilho. Algumas d'ellas descobrimol-as para assim dizer por palpite, porque se achavam inscriptas no Indice do Corpo Chronologico por um modo bem extravagante, que não denunciava uma grande pericia ou pelo menos uma grande attenção por parte do paleographo que decifrou as assignaturas. Foram attribuidas a Jeronymo de Castilho, Nuno de Castilho e até a fr. João de Castro!

Já depois de publicada a nossa obra, foi encontrada outra carta, que andava attribuida a Jeronymo de Castello. A que variedade de interpretações não deu logar a assignatura de João de Castilho, aliás de uma calligraphia que nada tinha de embaraçosa, como a de tantos dos seus contemporaneos!

Esta carta é de 8 de dezembro de 1535 e n'ella se queixa João de Castilho da carestia de trigo que se dava em Thomar, o que fazia com que os officiaes que trabalhavam na obra do convento a abandonassem pela falta de pão. Attribuia elle principalmente este mal ao convento ter dado de arrematação o celleiro a um christão novo. Esta carta, se é de pouca ou nenhuma importancia pelo lado artistico, é todavia de grande interesse pelo lado economico e social e por isso nos damos pressa em a estampar aqui, não sabendo quando a poderemos reproduzir no nosso Diccionario, que, por causa da typographia onde se imprime, não progride, ou antes permanece estaVOL. XLVII, N.o 12—DEZEMBRO DE 1900.

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cionario, n'uma enfadonha hybernação sem esperanças de primavera proxima.

Eis o curioso documento:

«<Senhor - Eu tenho medo que a gemte desta hobra asy hofeciais como a outra mais gemte me hao de desemparar e deixar por fallta de pao nesta villa por que ametade dos dias nao se acha nella bocado ha vemder /e graças a deus nesta terra ha deoses como no tempo dos gemtios por que hadeuinhao ho que ha de vir e jsto sao chrisptaos nouos que tem thomado thodo ho triguo desta uilla asy de celleiros como de comemdas /e ajmda per seus modos compraō allgum se uem/e ho lleuao pouco a pouco pera a casa e por este Respeito se naõ acha na uylla paō pera mamtimemto da gemte//por que ho celeiro desta casa Remeadua muito esta uilla e seu termo e aguora poucos dias ha por comcelho de thodos hos chrisptaos nouos cometerao a huum delles que a Remdase ho celleiro ao padre/ho quall jaa tinha metido e Recolhido em casa e por que ho padre lhe dese o triguo deste anno aRemdoulho por houtros dous annos //e como quer que ho aRemdasem ao padre a sua vomtade e por que he amiguo dacrecemtar aRemda do comvento/aRemdoulho do quall eu creo que lhe a elle ja pesa por ho ter aRemdado e diso estao thoda esta uilla e termo muyto escamdallyzados que dizem que ho pao que elles llaurao e semeao que he mujta sem Razao metello nas maos de huum tirano pera hos esfollar/por que quando este celleiro se uemdia pella casa punhase no que era Razaōse thoda ha houtra mais gemte vemdia emtaō// e posto caso que ho padre ho fez em boa emtemçao e por proueito da casa vimte nem trimta mill reaes naõ lhe satisfaz nada/em perdaa pera ha casa/por que ho pouo he de vosa allteza e asy has fazemdas que tem verdadeiramemte gramde seruiço de deus e de vosa allteza seria por meio nyso/por que ogestedia ha huum mes que elles se comtemtarão de ho vemder a çimcoemta e a çimcoemta e çimco/e se deus for seruido de nos dar allgua estrellydade de fome ajmda que ho vemdao a cruzado nem por yso hade abastar mais a terra/senao abastara pera roubar a vosa allteza por que ho que roubao ao seu pouoo a vosa allteza ho roubao/e ho seruiço de deus que vosa allteza nisto pode fazer que sera muito gramde he mamdar thomar ho çeleiro a este chrisptao nouo/e mamdallo emtregar a dous homens de bem que pagem a Remda ao padre per que elle estaa comsertado com elle e que ho. Repartao por este pouoo asy como se vemdya no comuemto/e as pagas que elle he hobrigado a dar e pagar ao padre frei Amtonio hos mesmos que tomarem ho celeiro lhe farao asy seus pagamemtos, e jsto me parece que vosa allteza deue de mamdar e sera muyto seruiço de deus por que doutra maneira nao tera ho pouo nenhum Remedeo e perderseha noso Senhor acrecemte hos djas de vyda a vosa allteza como thodos desejamos deste thomar oge biij de dezembro de 1535 Joham de Castillo.

Sobrescripto A EIRei Noso Senhor» (1).

SOUSA VITERBO.

(1), Torre do Tombo, Corpo Chronologico, parte 1.a, maço 56, doc. 93.

ALEXANDRE HERCULANO

I

No dia 14 de setembro de 1878 baixou á sepultura na Azoia de Baixo, pequeno burgo das proximidades de Santarem, of cadaver de Alexandre Herculano (1). Portugal perdeu neste homem o mais inclito cidadão, o seu primeiro historiador, o mais extrenuo defensor das liberdades patrias, e um dos seus soldados mais valentes. Puritano austero, conservou até á morte a integridade das suas convicções politicas e religiosas. Talento privilegiado, legou ao seu paiz na historia, na litteratura, na poesia, na critica e na politica os documentos do mais entranhavel patriotismo, e o mais subido monumento erguido, ha tres seculos a esta parte, á gloria nacional.

Embalado no berço entre os brados da patria abandonada pelo seu soberano, e adormecido ao ruido das luctas d'um povo que sacudia com paixão um jugo estranho e tyrannico, o vulto infantil de Alexandre Herculano medrou sacudido pelas convulsões nervosas d'uma sociedade profundamente desorganisada, cresceu na adolescencia acarinhado pelas ondulações caprichosas, e sempre terriveis, d'uma reconstituição politica, e desabrochou na juventude opprimido pelas exacções odiosas e violentas, d'uma usurpação execranda.

Havia retirado o Duque de Dalmacia do terreno portuguez, acossado pelos 30:000 inglezes de Wellesley e pelos 20:000 portuguezes de Beresford, e preparava-se a invasão de Massena, quando a 28 de março de 1810 nasceu em Lisboa Alexandre Herculano, filho de paes honrados. Os seus primeiros annos passou-os dedicados ao estudo das humanidades no Collegio dos Padres Congregados de S. Filippe Nery. Destinado a cursar as aulas universitarias quando, aos 17 annos, terminou estes estudos, viu então que a estrella do seu futuro começára de empallidecer, e principiou, em tão verdes annos, a experimentar os revezes implacaveis da sorte e os desgostos ineluctaveis da vida; revezes e desgostos que parecem per seguir acrisoladamente, do berço á campa, todos os que têm

(1) Falleceu ás 10 horas da noute do dia 13.

*

de ser fortes na lucta da existencia. Assim como nas batalhas se tempera o animo do soldado, e o valor enraiza e braceja vigorosos ramos com a diuturnidade do perigo, as adversidades da fortuna, os receios da incerteza e a dureza das privações; assim tambem aquelles que no mar da vida se viram sempre açoutados pelos ventos contrarios de borrascas inesperadas, sentem que o coração se lhes dilata pela tensão dos energicos sentimentos e das aspirações varonis.

O mallogrado academico soffreu o duro golpe de ver seu pae fulminado pela cegueira, em quanto seu avô, abastado em bens de fortuna, experimentava uma completa ruina, viIctima da sua honradez e dedicação. Nesta conjunctura não The succumbiu o animo; e para minorar a melancholia das suas cogitações e a tristeza do primeiro desengano dos seus sonhos juvenis, entregou-se com fervor ao estudo da paleographia, sciencia muito sua predilecta.

Mais tarde, por entre as agruras do desterro, exclamava elle:

«E eu, que velo na vida, e já não sonho
«nem gloria, nem ventura,

«eu, que esgotei tão cedo, até ás fezes,
«o calix da amargura;

«eu, vagabundo e pobre, e aos pés calcado
de quanto ha vil no mundo,

«santas inspirações morrer sentindo

"do coração no fundo,

«<sem achar no desterro uma harmonia

«de alma, que a minha entenda,

«porque seguir, curvado ante a desgraça,
"esta espinhosa senda?»>

Havia muito já que mergulhára no occaso esse astro tremendo e fugitivo, chamado Napoleão I. Em Portugal, depois de sacudido o jugo dos seus marechaes, vária tinha corrido a scena politica. A onda da revolução passara sobre a face do paiz. Tinha soado a hora da morte para as velhas immunidades do absolutismo e para a omnipotencia clerical, já então aviltada até ao opprobrio e escarnecida até á affronta. A 24 de agosto de 1820 a grande voz do povo portuguez levantára até aos céos o brado da liberdade, e proclamára a sua autonomia politica e social. Não fôra, porém, tão radical a reforma que, operada a reconstituição politica, não deixasse de permanecer ainda o velho machinismo social com os privilegios dos nobres, o desfaçamento dos mosteiros, as sinecuras e prebendas, a provecta e ruinosa administração, e a inchada e estupida auctoridade dos capitães móres.

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