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rito e o subjugaram por inteiro até ao fecho. Empolga-o antes de mais a fervorosa simpatia pelo feitor dos romances, impregnados de inspiração terna, tão delicados de traço e côr. Vota-se ao estudo dos seus livros com a veneração e o ardor de que falava o Dante:

Vagliami il longo studio e il grande amore Che mi ha fatto cercar lo tuo volume.

Teve o ensejo feliz de colher relíquias do passado de Júlio Diniz, de reviver pelo testemunho guardado páginas da sua vida presas às páginas dos seus livros, dados preciosos que sem a sua curiosidade diligente se deliriam emfim no nada do esquecimento; e esses encontros acenderam-lhe a febre da rebusca, grata enfermidade da inteligência, porque, emquanto dura, gera uma embriaguez, uma euforia, um paraízo artificial como nenhum outro. Só assim se

levam a têrmo, sem resfolegar, fainas dêste teor e acabamento.

Emfim, estesiou-lhe a mente um outro afecto, o amor do torrão natal. Júlio Diniz retrata do natural as paisagens dos seus melhores romances aldeões na região de Ovar; vem a ser o bucolista da terra e da gente vareiras ---ora Egas Moniz é um vareiro da gema, até à medula dos ossos. Do seu berço de inocente pudera exclamar o verso do D. Jaime:

Lisa estrada onde andei débil infante

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lisa estrada sempre-0 -o caminho de pé pôsto na orla dos milharais o leito fulvo da areia por entre os pinheiros — a veia das rias por onde correm as velas latinas enfunadas pela brisa marinha. Por êsse rincão, desdenhado pelo mau gôsto do indígena, de bem maior beleza que o holandês, habitado pela raça portuguesa mais formosa

e de mais doce carácter, onde se conserva ainda o traje da Murtósa, o melhor padrão pitoresco da nossa indumentária -por ésse rincão saudoso me levaram em pequeno à peregrinação do S. Paio da Torreira. Ia encantado com o deslisar do barco pela ria abaixo, levado à vara pelo tripulante a correr de pé descalço sôbre a borda. Ressurgiu-me esta visão, tão risonha de luz e colorido, das terras e dos canais vareiros, ao ver-me pela primeira vez dentro de uma gôndola pela laguna de Veneza - onde por contraste só descortinava negruras, na água, no canal, no barco e até no passageiro.

Na sua obra verdadeiramente exaustiva, em que tudo quanto se possa catar e contar sobre Gomes Coelho, tem lugar e texto -apresentado com o rigor de método, próprio de um scientista, e com a forma clara e atraente, própria de um escritor de cunho -quantos capítulos me despertaram e me despertarão curiosidades; e digo assim por

que nem vagar tive de a ler atentamente toda. Espero que ma mande depois de impressa, se houver tempo, para Paris, para que à volta a sua leitura me amenize as horas lentas do comboio e linimente as amar

guras do regresso, hoje tão melancólico.

Em livro, onde quanto se deseje, se encontra exposto, arrumado e anotado, procurei saber das relações de Júlio Diniz com Camillo. Que pensariam um do outro, o mestre consagrado do Amor de Perdição e o romancista novel da Morgadinha?

Contava-me o meu velho professor Pedro Dias que Camillo, ao tempo presa de profundo descoroçoamento, se lastimara de se ver excedido e incapacitado de ombrear com o rival. É possível que se deixasse invadir, como de outras vezes, por um errado sentimento de modéstia; despeitos de inveja, nunca lhos conheci para ninguém.

Não sei que na obra de Camillo haja referências a Gomes Coelho; que os camilis

tas digam se erro. Mas de Júlio Diniz há a carta do encontro em Lisboa com o mestre, a contar que êste lhe testimunhara o mais vivo interesse pelo homem e pelo escritor em termos efusivos, que na carta são propositadamente sublinhados, como quem diz - bem me fio eu nisso. As pessoas de carácter misantropo e abondadado são em extremo suspicazes; fogem do semelhante por desconfiança e temor; são como os animais ariscos que, quando se lhes faz festa, não estão tranquilos e nos olham receosos. Mal sabia Julio Diniz, quão cruelmente ingrato foi. E seria o único pecado da sua vida. Camillo, poço sem fundo de sentimentalidade, era capaz de todas as piedades e devoções; compadecia-se da desgraça e das mágoas alheias, foi toda a sua vida um dedicado de alma. Possuia além disso, por paradoxal que pareça, um espírito singular de confraternidade literária, que traspassava as próprias refertas por agudas que. fôssem, êle que

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