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IV-Prognóstico. Para o autor, as fistulas do ânus «são mais incómodas do que perigosas e, por isso, é favorável o seu prognóstico no maior número dos casos». Exceptua-se, porém, algum em que o prognóstico «se torna mais sério». No início dêste pequeno capítulo escreve palavras que podem ser perfilhadas. Se bem atendeu à doutrina nelas expendida, lucrou João da Silveira na sua carreira profissional, que foi de cerca de 55 anos, por terras de Ovar. Passamos a transcrevê-las:

«Mil circunstâncias mais ou menos sabidas e muitas inteiramente fora do nosso conhecimento embaraçam e põem em risco as predições do prático sôbre qualquer enfermidade. Assim prognosticar é errar muitas vezes com descrédito de quem prognosticou; pelo que é mister o mais rigoroso critério em assunto de tal natu

dentemente metido no recto», escreveu que o estilete «à fôrça de movimentos doces de introdução», etc.

Emendou, por sua letra, a palavra «doces» por «suaves». Pareceu-lhe, por certo, mais apropriada e mais portuguesa a adjectivação.

c) - Referindo-se ainda às sondagens pelo estilete, escreveu que «a estreiteza do oríficio e sinuosidades do trajecto se opõem a que o estilete o atravesse em todo o seu comprimento.»>

Riscou a palavra atravesse e substituiu-a por percorra, que julgou mais adequada.

reza. Todavia, somos de parecer que sendo a doença bem conhecida e o prático assás experimentado, êste poderá prognosticar com alguma segurança.>>

V - Tratamento. É o mais vasto capítulo do trabalho, como era de esperar em médico que se destinava à prática clínica.

João José da Silveira põe inicialmente a questão nestes termos:

«Nada há mais simples que o tratamento da fístula do ano, tal é a verdade geralmente admitida hoje entre os práticos, posto-que, durante longo tempo, se tenha olhado esta doença como da maior importância em cirurgia, recomendando-se para a curar meios que não serviam, se não para perturbar o trabalho salutar da natureza, tornar mais difícil a cura que seria pronta por meios muito mais fáceis.»

Êste apêlo ao trabalho salutar da natureza, muito em voga nos práticos de há algumas décadas de anos, e ainda hoje bordão nas horas aflitivas das prognoses graves, foi divisa da sua carreira, através da vida clínica em que se consumiu até 1896.

Depois enumera João da Silveira os processos até então empregados no tratamento da fístula do ano: supositórios, compressão, in

jecções irritantes, cautério potencial, cautério actual, excisão ou extirpação, ligaduras e incisão.

Todos êstes processos mereceram ao autor referências e comentários, com citações várias, em que o nome de Hipócrates salta repetidas. vezes ao lado dos de Celso e de Galeno, evocando uma época de que ainda se conservavam reminiscências, quer nos livros do tempo, quer nas prelecções dos lentes mais idosos.

Prefere o autor a incisão a todos os outros. tratamentos e dá-lhe foros aristocráticos, comentando que «começou a ser apreciada no século xvii, depois da operação de Luís XIV». E conclui com acentuado bom-senso clínico:

«Se a preferência de qualquer método se funda na facilidade da execução, simplicidadede meios, produção do menor número pos-sível de acidentes e, sobretudo, na maior probabilidade de cura, segue-se que o método da. incisão deve ser o preferido.>>

Assim conclui a dissertação de João José da: Silveira, que se tornou digna de ser recordada. devido à circunstância de se julgar perdida.

Nunca julgou o velho cirurgião vareiro que,. oitenta e dois anos depois de ser discutida a sua tese, feita no modesto propósito de alcançara sua carta profissional, merecesse ressuscitar

e vir à luz da publicidade. Sempre supôs que o seu manuscrito ficasse empilhado, com os seus. companheiros, nos arquivos da Escola, à espera da traça destruïdora. Assim não sucedeu.

Azares da vida!

João José da Silveira deu a Júlio Denis o tipo cheio de bonomia do médico provinciano. Daí a curiosidade de lhe desvendarmos a vida e de lhe conhecermos as habilitações clínicas desde a sua origem.

Feito homem célebre à fôrça, trazido para o estudo e crítica dos apreciadores dos livros de Júlio Denis, não pôde dormir o sono tranquilo de desconhecido a que a sua modesta personalidade se julgava com direito. Nem o homem, nem o estudante, nem o médico, com tôdas as suas virtudes e pequenas fraquezas, ficaram em sossêgo!

Razão tinha o bom velho em se contrariar quando lhe soava aos ouvidos o epiteto de João Semana! Era o pressentimento dêste precalço da notoriedade a torturá-lo!

Defendida a tese, entrou João José da Silveira na vida prática. Segundo informa o padre Manuel Lírio (1), começou a exercer clínica na

(1) Padre Manuel Lírio, loc. cit., pág. 6. A tese foi defendida em 1841 e não em 1844, como, por lapso, vem no referido artigo.

freguesia de Arada, do concelho de Ovar,
onde trabalhou durante dez anos e onde logrou
a simpatia e a gratidão dos seus habitantes.

Foi colocado como médico do partido muni-
cipal em 11 de Janeiro de 1852 e nêle se con-
servou até à morte, em 1896.

Na época em que Júlio Denis esteve em
Ovar, havia ali, além do cirurgião João José
da Silveira, o médico (por Coimbra) Ma-
nuel Pereira Zagalo e os cirurgiões: António
Isaac Teixeira de Pinho, João Frederico Tei-
xeira de Pinho e José Damião de Carvalho.
Dêstes foram o cirurgião João José da Silveira
e o dr. Manuel Pereira Zagalo os que tiveram
as maiores clínicas; mas ainda assim com uma
grande diferença a favor do primeiro (1).

Aquêle farmacêutico Teixeira de Pinho, de
que fala Júlio Denis numa das cartas a Custó-
dio Passos (2), era parente dos dois cirurgiões
dêste nome, acima citados (3).

Não sabemos informar os leitores dos suces-
sos clínicos de João Semana. Deviam ser iguais,
naquelas paragens, aos dos outros médicos de
fama, pois trabalho não lhe faltava na vila e
arredores.

(1) Informação do dr. José de Almeida.

(2) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, vol. II, pág. 186.
(3) Tem descendência no Pôrto. Informação do

dr. José de Almeida.

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