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pusesse totalmente de parte o latim bárbaro, que ainda persistiu por muito tempo. Quási pela mesma época, a poesia, sobretudo, apodera-se da língua falada pelo povo e eleva-a à dignidade de literária. Como já sucedera em Roma com o latim, segundo vimos atrás, o português desde então scinde-se e toma duas feições, que cada vez se vão afastando mais, a popular e a literária ou culta, as quais têm chegado até nós. Fixando-a pela escrita, a literatura veio não só em parte pôr um dique às transformações fonéticas, que necessàriamente continuariam a operar-se com a mesma força que antes, mas sobretudo dar-lhe carácter mais alatinado, porquanto, além de proscrever muitos vocábulos de antiga formação popular, que substituiu por outros de formação nova e inteiramente artificial, introduziu também bastantes cultos. Aqui, como lá fora, a leitura dos livros latinos, especialmente os de carácter religioso, nunca cessou; dessa leitura havia de forçosamente ressentir-se a língua literária. Com efeito, precisando de traduzir para vulgar, ou romance, como então se dizia, algumas dessas obras, os respectivos tra

VOL. III

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dutores, ou porque a língua popular lhes não oferecia equivalente ao têrmo latino, ou por prurido de erudição, trasladavam-no para português, dando-lhe na maioria dos casos feição nacional, mas que no em-tanto não passava de artificial. E que essas traduções estavam muito em voga na Idade-Média, dá-nos disso testemunho el-rei D. Duarte, que no seu Leal Conselheiro chega a formular as regras para bem traduzir (1). É a estes vocábulos, que o cultivo do latim introduziu na língua quási desde o seu aparecimento, mas principalmente nos séculos XIV e XV, que se dá o nome de cultos. A par dêstes, outros há cujas modificações foram superiores, mas que, apesar disso, entraram na língua, não pelo ouvido, mas pela leitura e em data mais antiga; são os semi-cultos. Tanto uns como outros distinguem-se dos que constituem a base da língua - os populares - cuja introdução no léxico coïncide com o período da sua formação e que revelam evolução espontânea e gradual, ao contrário dos

(1) V. «Paladinos da Linguagem», vol. I, cap. I.

outros, que apresentam aspecto artificial e portanto forçado. Assim, comparando, por exemplo, as palavras noite, frio, pessoa, pé, etc., com nocturno, frígido, personificar, pedal, etc., reconhecemos logo à primeira vista que foi diferente a maneira do seu tratamento e que na sua evolução seguiram caminho diverso, donde lhes resultou aspecto especial e por vezes tão peculiar, que nem sempre é visível, logo à primeira inspecção, o laço que os prende, como sucede, v. g., a quelha e tanchar, que aparentemente não mostram relação alguma com canal e plantar. Ainda com relação aos vocábulos populares, cumpre observar que não datam todos da mesma época; uns fizeram a sua entrada na língua, quando outros, havia muito, nela tinham assento e morada, pois só assim se explica que sons idênticos fôssem tratados diferentemente, como se vê em artelho e artigo, representantes ambos do latim articulus. Vocábulos há, até, que conheceram as três fases: popular, semi-culta e culta; outros, apenas as duas primeiras. Dêste facto resultou aparecer actualmente na língua o mesmo vocábulo latino sob

formas diferentes, dando assim origem aos chamados divergentes ou alótropos. Estão neste caso vezo, viço e vício, relha, regra e régua, além de outros muitos, os quais correspondem a uma única forma latina, que para os citados é vitiu e regula.

Os fenómenos que resumidamente acabamos de mencionar dão à língua duas fases que, embora se não distingam essencialmente uma da outra, apresentam contudo caracteres suficientes para se estabelecer separação entre elas; são: a arcaica, que se estende do século XII aos meados do século xvi; e a moderna, que, principiando então, continua nos nossos dias. Mas, porque a língua, antes de ser fixada pela escrita, já existia, segundo vimos, poderemos admitir outras duas fases anteriores àquelas, a saber: a pre-histórica, que abrange todo o período da formação da língua, no qual esta se nos não revela; e a proto-histórica, que vai desde o século Ix até ao XII, espaço de tempo êste no qual só a conhecemos pelos escritos em latim bárbaro.

(Do Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa (Fonética-Morfologia), Lisboa, 1919; pág. 13 e ss.)

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José Júlio da Silva Ramos

Da Academia Brasileira

A REFORMA ORTOGRÁFICA

final de uma carta que dirigi ao meu illustre colega e amigo Dr. Alfredo Gomes (1) pelo jornal A Noite, de 2 de Fevereiro de 1916, a propósito da reforma ortográfica portuguesa, lancei os seguintes períodos:

No Brasil, só se compreende um combate sério e digno à ortografia oficial portuguesa e é a êsse que eu repto a Alfredo Gomes e a todos os meus colegas e adversários daquela maneira de grafar, e vem a ser que para a primeira arremetida ponham em linha de batalha todos os

(1) Prof. da Escola Normal do Rio de Janeiro, adversário da nova ortografia portuguesa.

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