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formas verbais escritas ou impressas. Queria que a ortografia fôsse estável e definitiva, adiantando-se assim, sem dar por isso, aos que, daqui por cinqüenta ou cem anos, hão-de defender à unhada (como êle a antiga) a ortografia hoje nova, se alguém pretender ou ameaçar modificá-la. Queria uma ortografia racional, coisa que nunca houve, nem há, nem pode haver, em-quanto as linguas forem o que hão-de ser sempre: criações maravilhosas, feitas a um tempo de fantasia e de lógica, de indisciplina e de regra, de fixidez e volubilidade, de poesia e de gramática. E queria por último uma ortografia forte e essencialmente portuguesa dois adjectivos e um advérbio que produzem muito efeito, mas nenhum sentido.

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O que fazia verdadeiramente tipico, como documento de revolta do hábito, o caso de Abel Botelho e da sua oposição à ortografia nova é que êsse escritor não era criatura de hábitos. Foi êle um dos três membros da comissão republicana que substituiu por verde e vermelho as côres azul e branca da bandeira nacional. Vinte e cinco ou trinta anos de carreira militar, que já tinha ao raiar da aurora de 5 de Outubro, não bastaram para o habituar à velha bandeira, a ponto de que a defendesse ali, com o seu voto, ao menos, quem jurara defendê-la com o seu sangue.

Em literatura Abel Botelho tinha, nos tempos

monàrquicos, o vício de descrever em romance os maus costumes, a que êle chamava genèricamente Patologia Social. Logo que a República foi implantada, abjurou sem saudade dêste seu velho hábito, declarando a um jornalista que aquele acontecimento politico ¡acabara em Portugal com tudo quando era socialmente patológico! Doutrina que o obrigaria a escrever daí por diante tôda uma série de romances de Fisiologia social ou de Higiene Republicana, se lhe não tivesse parecido mais higiénico ir procurar melhores ares em Buenos Aires, para onde se fêz nomear ministro.

Curioso é notar que Abel Botelho, tão conservador em matéria ortográfica, não tinha håbitos, nem respeito dos hábitos alheios, no tocante ao vocabulário. Esse escritor feriu profundamente o bom gôsto de quem o lia, eivando a sua linguagem de neologismos deselegantes, de inovações inúteis, de grotescos desengonçamentos na derivação das palavras. Não se ensaiava para escrever caprichivo em vez de caprichoso, ou compreensoso, em vez de compreensivo. Jå vimos, numa transcrição anterior do seu próprio libelo contra a nova ortografia, como êle foi buscar o adjectivo plantureux, já suficientemente insuportável em francês, para fabricar com êle o seu incrivel e medonho planturesco. E foi êste inventor de palavrões novos o primeiro escritor português que apareceu, em nome da ele

gância, a repontar contra a supressão de qualquer letrinha inútil nas palavras velhas......

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Os Franceses escrevem hymne, os Espanhóis himno e os Italianos inno; e a estas três formas de exprimir gràficamente as três palavras de sentido igual correspondem pronunciações diversas. Abstraiamos, porém, da diversidade de pronúncia; suponhamos que acabávamos de ler aqueles vocábulos em outros tantos belos poemas escritos em cada uma das três linguas mencionadas: ninguém dirȧ ou pensará que, um instante sequer, nos ocorresse comparar os meros aspectos gráficos de hymne, himno e inno, e concluir que um dêles fôsse mais belo ou mais estético do que outro qualquer. Poderiamos, de-certo, entrando analiticamente em comparações de sonoridade, achar mais música no inno italiano do que no hymne francês; mas faria figura de doido aquele que, finda a leitura da obra de arte italiana, se pusesse a lamentar, como feia, a falta do he do y na forma inno; ou outro, mais dado à simplicidade ortográfica, a quem ouvissemos extasiar-se, em meio da leitura, porque a escrita itálica, bela

mente, estèticamente, no seu sentir, se libertou de multas escravidões etimológicas.

As linguas francesa, italiana, castelhana, assim como a inglêsa e a alemã — para só falarmos das mais conhecidas teem arrumadas e unificadas as suas grafias respectivas. Umas mais simples, outras mais complicadas; umas mais próximas, outras mais distantes do ideal inatingível de rigor lógico máximo ou de perfeita exactidão fonética certo é que em cada nação onde se falam e escrevem essas linguas todos se sujeitam a certa norma gráfica estabelecida, e a ninguém ali se suscita como caso ou problema de estética o aspecto da palavra escrita. Normalmente está a grafia para a lingua literária ou artistica como o cinzel para a escultura ou o pincel para o quadro ; é ferramenta, é aparelho técnico, é ingrediente, ou bastidor inteiramente alheio e externo ao puro efeito de arte. Ortografia quer dizer ordem, disciplina, sistema, costume. Onde exista, não se impõe, como acontece à boa dona de albergue, que o hóspede reconhece e aprecia pelo confôrto que goza, embora ela lhe não apareça para a conversa. Ortografia e estética da linguagem são, pois, em certo modo, termos estranhos ou antinómicos; e em qualquer tratado ou estudo de estética da lingua alemã, ou da lingua francesa, mal se compreenderia um capitulo sôbre o aspecto gráfico da fala nacional.

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Em português, pelo contrário, temos várias grafias, muitas heterografias e, por em-quanto, nenhuma ortografia, quer dizer: nenhum cânone gráfico que todos, em Portugal como no Brasil, observem sem discussão. De onde resulta que nas pinturas literárias portuguesas e brasileiras se sèntem intempestivamente os pêlos do pincel; e que a nossa lingua veio a parecer-se com uma estalagem desordenada, que mais inóspita se tornasse ainda com a vozearia da patroa, das filhas e das criadas, a gritarem, cada uma para seu lado, sôbre o melhor arranjo possível da casa que nunca arrumam a valer.

Assim entra de-certo a grafia nos domínios da estética lingüistica; mas entra, por desgraça e tristeza, é até por vergonha nossa, como macaco em guarda-loiça.

Na falta de ordem gera-se o caos; e as pobres veleidades de o evitar não fazem senão agravá-lo, desconfortando-nos, porque além de informe o tornam bulhento. Cruzam-se as propostas; abalroam as formas dispares; ouvem-se queixas e zangas; predomina a hesitação e a incerteza; é o hábito, incapaz de formar-se como nivel médio nesta åġua agitada e doida, a cada passo se erriça e irrita contra o desábito constante. O mesmo poeta ès

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