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Para fazer renascer de suas cinzas as antigas povoações e promover ao mesmo tempo a creação d'outras, attrahindo aos novos centros familias que reedificassem os burgos e as aldeias e cultivassem os campos, concediam-se aos seus habitantes um certo numero de privilegios e garantias, que a principio variavam segundo a maior ou menor possibilidade, a que esses logares estavam sujeitos, de incursões agarenas. Para isso davam-se aquelles terrenos de aforamento, collectivamente, a um certo numero de individuos, determinado ou não, em que se estipulava o fôro ou pensão que cada morador devia pagar ao senhor da terra, quer esta fosse da nação (terras da coroa), quer do rei (reguengos), quer particular (herdamentos).

Portugal, como diz o sr. A. Herculano, dividido entre o rei, o clero e os grandes, formava como que um vasto prazo, arroteado por colonos de diversas naturezas.

5. Diz o sr. dr. A. Jardim que, posto já no seculo x e até antes se usassem os emprazamentos, que depois foram quasi as unicas fórmas de convencionar sobre a cultura das terras, comtudo esses emprazamentos eram diversos da emphyteuse romana, constituindo uma instituição propria da epocha; abraçando assim a opinião de Mello Freire que dizia que o direito emphyteutico começou a usar-se entre nós principalmente no tempo de D. João I, no reinado do qual o direito justinianeu obteve grande auctoridade no fôro (i).

Esta opinião, porém, não nos parece rigorosamente verdadeira; pois, embora esses antigos emprazamentos e aforamentos não sejam a emphyteuse pura e simples, tal como a vimos no direito romano, é comtudo incontestavel que elles se assemelham mais ou menos á emphyteuse, e que esta começou a usar-se entre nós muito antes do reinado de D. João I.

Na verdade alguns dos nossos escriptores fazem menção de documentos dos seculos XII e XIII, nos quaes se estabelecem certas quotas de fructos, ou certos foros, direitos e direituras, parte do preço das vendas que se fizessem, etc., que são caracteristica propria e privativa da emphyteuse (2).

(1) Dr. A. Jardim, obr. cit., pag. 44; Mello Freire, obr. cit., liv. 3.o, tit. 2.o, §2.° nota.

(2) Fr. J. de St. R. de Viterbo, Elucidario, vbs. Emprazamento, Encomunhas, Terradego, Direitura, etc.; Almeida e Sousa (Lobão), Direito emphyteutico, cap. 1, §§ 4.° e 5.0

O sr. A. Herculano, na sua notavel Historia de Portugal, pagg. 101 e seguintes do vol. I da 1.a edição, apresenta os artigos das queixas levadas perante o Papa pelo alto clero portuguez contra D. Affonso III, um dos quaes, o 23.o, reza assim: «Que não só prohibia aos ecclesiasticos a acquisição de quaesquer propriedades, ainda não sendo emphyteuticas nem feudaes (non emphyteuticas, nec feudales), mas....» o que parece indicar que já n'esse tempo a emphyteuse era usada entre nós.

Além d'isso é tambem hoje fóra de duvida que muito antes do reinado de D. João I foi conhecido e usado entre nós o Corpus Juris Civilis de Justiniano.

Assim Coelho da Rocha diz que foi introduzido no reinado de D. Affonso III, e que no de D. Diniz já elle era ensinado na nossa Universidade (1); Raymundo Nogueira (2) e Mello Freire (3) opinam que no reinado de D. Affonso II; J. A. de Figueiredo faz remontar a sua introducção entre nós ao tempo de D. Affonso Henriques (4); H. Schaefer pretende mesmo encontrar vestigios de ser já usado no reinado de D. Affonso Henriques o direito romano, citando um documento comprovativo d'esta asserção, affirmando, todavia, que só no reinado de D. Diniz se vulgarisou entre nós, tornando-se direito commum (5); e Gama Barros demonstra que ha provas do seu uso entre nós no reinado de D. Affonso II, começando a vulgarisar-se principalmente no de D. Diniz (6).

Ora não é crivel que sendo usado entre nós, desde ha tanto tempo, o direito romano, não estivesse tambem em uso a emphyteuse, uma das suas mais notaveis instituições, e que tantos e tão beneficos effeitos deveria produzir entre nós no primeiro periodo da monarchia. O que é certo, porém, é que nos primitivos tempos da monarchia a emphyteuse se desviou bastante da simplicidade da emphyteuse romana, para se deixar influenciar pelas differentes circumstancias do tempo, como não podia deixar de ser.

Mas pondo de parte esta questão, bem como o estabelecer

(1) Coelho da Rocha, Ensaio, 6.a ediç., pag. 79.

(2) Prelecções de direito patrio, pag. 33.

(3) Hist. juris lusit., cap. vi, 8 62.0, nota a pap das Sciencias, vol. 1, (4) Memorias litterarias da Academia Real das

pagg. 270 e segg.

(5) H. Schaefer, Historia de Portugal, ediç. port., vol. 1, pagg. 487 e

segg.

(6) G. Barros, Historia da administração publica em Portugal, vol. I, pagg. 59 e segg.

a differença que primitivamente se dava entre emprazamento e aforamento, basta dizer que com o andar dos tempos, e desde bem cedo, ambas estas palavras se tornaram synonymas, sendo as disposições do direito romano indistinctamente applicadas a qualquer d'estas especies de contractos, que se tinham consubstanciado e unificado n'um só, ou tivesse o nome de emprazamento, de aforamento ou de emphyteuse.

6. Nos primeiros tempos da monarchia os aforamentos, em vista do seu caracter semi-feudal, eram principalmente regulados pelo direito publico; os senhores concediam esses aforamentos em harmonia com os foraes, alguns dos quaes pouco mais indicavam que as contribuições agrarias impostas aos povos em favor dos senhorios, debaixo da fórma de contractos, dos quaes os mesmos senhores continuamente abusavam, deixando os pobres cultivadores nas mais precarias circumstancias.

N'esses tempos os aforamentos não eram contractos, eram antes leis impostas pelos dominadores, que só na ignorancia da epocha encontravam a garantia das suas extorções. Pois que liberdade poderia ter um simples homem do povo, um humilde cabaneiro perante um grande senhor no seu castello ou palacio, perante um abbade no seu mosteiro, perante um cabido ou outro qualquer senhorio ou corporação, cercados do poder e prestigio que a aristocracia gosou, e do fanatismo e apparato religioso, que fizeram abater até os proprios reis perante a nobreza e o clero?

Em taes contractos não podia haver liberdade, havia antes a necessidade, a coacção moral.

N'esses tempos em que o direito de conquista era, em regra, o titulo do direito de propriedade, julgava-se que a emphyteuse era, da parte do senhorio, uma mera liberalidade; dando isso logar a que os emphyteutas sobrecarregados deshumana e cruelmente com quotas excessivas, duras e extravagantes, reputassem ainda assim os senhorios que os opprimiam, como seus bemfeitores.

Além d'isso elles viveram em epochas desastrosas, em que a classe média via dia a dia abysmarem-se as suas fileiras, em que a pequena propriedade se desmoronava arrastando os proprietarios na sua quéda, e em que os grandes dominios e os grandes proprietarios opprimiam e vexavam á sua vontade a povoação livre mas pobre. Por isso os emphyteutas, sós e sem defeza, não poderam escapar ao systema geral de oppressão.

Os emphyteutas reservavam para si sómente o que os que se suppunham senhores das terras muito bem lhes queriam deixar, que era o strictamente necessario para viverem. «A nossa classe cultivadora e laboriosa, escrevia Mousinho da Silveira no relatorio do decreto de 13 de agosto de 1832, era tão espoliada que apenas lhe ficavam meios inferiores aos dos mais vis mendigos» (1).

As prestações que elles tinham a pagar aos senhorios eram muitas e variadas; accrescentando ainda que não havia extravagancia com que não fossem onerados, taes como passear o senhorio ao collo, dar dinheiro para comprar um certo numero de ferraduras ou ferro para ellas, etc. (2).

E a maior parte d'essas prepotencias e extorsões que se notavam nos primeiros tempos da monarchia, acompanharam os aforamentos atravez das differentes edades, de modo que já no seculo xvi um illustre lente da nossa Universidade escrevia: «Prout sunt hodie omnes directi domini petulantes, cupientes omnia sibi assumere, non potest ista respublica sustineri, et penitus periret» (3).

E se havia uma tal exorbitancia com respeito ás pensões ordinarias, as extraordinarias não o eram menos. Refere J. Pedro Ribeiro que no cartorio de um mosteiro extincto, entre os diversos contractos de aforamento, só encontrára um previlegiado com o laudemio do terço, tendo todos os mais a condição, no caso de venda, de poder ficar o senhorio com os bens por metade do preço que outrem désse, e não querendo, receber de laudemio metade do mesmo preço (4).

Em seguida aos foraes, leis particulares de uma povoação ou districto, pelos quaes como que se faziam aforamentos collectivos, as primeiras leis sobre prazos encontramol-as nas Ordenações Affonsinas, liv. Iv, titt. 77.o a 80.o, onde todavia apenas se regula a nomeação e successão dos prazos, e se estabelecem os direitos de opção e commisso, disposições que foram extrahidas dos antigos costumes e do direito romano, como o proprio legislador declara.

(1) Dr. A. Jardim, obr. cit., pag. 65.

(2) Dr. A. Jardim, Principios de finanças, pag. 289, nota (b); Viterbo, Elucidario, vb. Ferradura.

(3) Valasco, Quaest. de jure emphyt., cons. 123, n.o 13, cit. por C. da Rocha, obr. cit., II, pag. 706.

(4) J. P. Ribeiro, Memoria sobre os inconvenientes e vantagens dos prazos, no tom, vii das Memorias litterarias da Academia Real das Sciencias, pag. 286.

Estas disposições passaram, nas suas linhas geraes, para as Ordenações Manuelinas, liv. iv, titt. 62.° a 65.o; e depois para as Ordenações Philippinas, liv. iv, titt. 36. a 40.; e foram estas as unicas disposições que durante muito tempo regularam tão vasta materia, n'uma epocha em que a maior parte do paiz estava onerada com emprazamentos.

Em face de uma tal deficiencia da legislação emphyteutica, a confusão e incerteza das decisões dos tribunaes era enorme, sendo para se dizer-tot capita, tot sententiae.

Com o apparecimento, porém, do grande Marquez de Pombal, a quem tantos cuidados mereceu a agricultura nacional, esta instituição soffreu bastantes e beneficas modificações: já prohibindo-se ás igrejas, ordens, mosteiros e outras corporações de mão morta a consolidação do dominio. directo com o util, assim como augmentarem o fôro ou laudemio na renovação dos prazos (leis de 4 de julho de 1768, e de 12 de maio de 1769); já sanccionando a equidade de Bartholo (1), e abolindo o citado direito de consolidação, permittindo-a unicamente na falta de parentes do ultimo foreiro até ao 4.o grau, segundo o direito canonico, o que raras vezes deveria succeder (alvará de 9 de setembro de 1769, §§ 25.° e 26.); já determinando que os emprazamentos de futuro, de bens cultivados, fossem regulados pelas leis de locação e não pelas opiniões geraes sobre a emphyteuse (lei de 4 de julho de 1776), o que fez desapparecer as clausulas dos antigos aforamentos.

Modernamente publicou-se a lei de 5 de junho de 1822, pela qual se reduziram a metade todas as pensões emphyteuticas e sub-emphyteuticas comprehendidas nos terrenos que faziam objecto dos foraes, e se converteram as quotas incertas em prestações certas, tornando-se ao mesmo tempo remiveis. Porém, com a quéda do regimen liberal em 1823, cahiram tambem as medidas e diplomas legislativos que d'elle tinham emanado, sendo portanto esta lei tambem abrogada.

Ao atearem-se entre nós as luctas civis entre o antigo e o novo regimen, o notavel Mousinho da Silveira, ministro da Regencia, julgando que moveria o paiz com decretos mol

(1) Denomina-se equidade de Bartholo a opinião attribuida a este jurisconsulto, de que os senhorios são obrigados a renovar o aforamento em vidas ao herdeiro da ultima, ainda que na investidura se achasse clausula em contrario (C. da Rocha, Instituições de direito civil portuguez, nota final ao § 533.o)

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