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Depois d'isso, as festas. O domingo vem no fim de seis dias de trabalho. Se este trabalho está feito, ainda bem! Folguem os que assim julgam, e bom proveito lhes faça.

Nós teimamos em acreditar que não está ; e apesar do 9 de julho, apesar do 1.o de dezembro, apesar do dia de hoje, appellamos para uma prova mais segura, mais séria, mais difficil, embora menos espaventosa e brilhante do que os cirios e as luminarias. Camões escreveu um poena que foi um epitaphio, porque a sociedade que cantou acabou com elle. Os Lusiadas consagram as obras dos heroes. Pensamos nós acaso repetir-lhes as façanhas com o facil e commodo endeusamento do poeta ?

Perigosa illusão que pode levar a suppôr-nos felizes e meritorios! Quando os Lusiadas se leram ao rei, tudo eram festas e esperanças no reino. Preparava-se Alcacerquibir. E todos acreditavam - incluindo o poeta em pessoa que se ia conquistar Marrocos com a setta que o Papa mandára a D. Sebastião...

O melhor modo de consagrar os heroes é repetir-lhes as façanhas. Decerto os tempos mudaram, e ninguem pensa hoje em redimir o sepulchro santo. Com os tempos vieram ambições, desejos, idéas novas; mas os meios com que as idéas vingam, foram sempre, serão sempre os mesmos. São o caracter, a virtude, o heroismo, que valem decerto mais do que todas as luminarias. Nunca as festas de Athenas foram maiores do que depois de tutelada, por incapaz, pelos romanos. A Grecia, porém, nos bellos tempos de Eschylo, repartia as suas forças entre as pelejas e os debates; e terminada a guerra, votada a lei, solemnisava as grandes cousas que fazia.

Nós, que abusamos demais das glorias conquistadas por nossos avós, suppondo que ellas bastam para nos justificarem a fraqueza e os vicios, devemos considerar o Centenario como um incitamento a melhor vida: um Confiteor e não um Gloria. Penitenciemo-nos, pois.

Se o Centenario ficar como expressão nova de uma basofia velha, melhor fôra não se ter feito.

Infelizmente, doze annos de factos mostraram que o enthusiasmo de 1880 ardeu como a palha,

produzindo um clarão ephemero, por não se alimentar a chamma com a lenha de sacrificio, abnegação e arrependimento, sem as quaes as nações podem agitar-se em accessos de epilepsia mais ou menos mansa, mas não podem restaurar a severa e serena consciencia da força.

Os Lusíadas, portanto, voltavam a ser uma saudade, dissipada a esperança de um momento. A critica tornava a exercer o seu papel de consoladora e mitigante, nas horas de desalento em que sentimos os braços quebrados para a acção. Camões tornava a pertencer á historia de um passado extincto, desde que o bafo morno da impenitencia lhe varria para longe a imagem desenhada nos horisontes luminosos de um dia.

Muitas e muito boas obras, aqui e lá por fóra, vieram remoçar a litteratura camoneana. Aos trabalhos do visconde de Juromenha e do snr. Theophilo Braga, succederam-se as traducções de Storck e a sua vida do poeta; a de Burton, com os preciosos commentarios que a acompanham; a edição do Garcia da Orta, do snr. conde de Ficalho, e a sua vida do author dos Simples e Drogas; a edição verdadeiramente magistral de Sá de Miranda, da snr. D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos; para não fallar no sem numero de opusculos e monographias, entre os quaes alguns de superior merecimento, como, por exemplo, a Flora dos Lusiadas, do snr. conde de Ficalho, e o Escholiaste do snr. Vasconcellos Abreu.

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Haverá tres annos, pois, vindo para mim dias, senão de mais descanço, pelo menos de maior socego de animo, entendi ser chegada a occasião de refundir este livro da minha mocidade, e a que por isso talvez ligava um carinho particular. Para nós, os es

criptores, os livros são como filhos: carne da nossa carne, sangue do nosso sangue.

Puz mãos, portanto, á obra que agora se apresenta a publico, e a que não quiz alterar, nem os lineamentos primitivos, nem o tom juvenilmente exuberante que lhe encontrava no estylo.

E succedendo que, pelo tempo em que terminava este trabalho, a Academia Real das Sciencias de Lisboa abria o seu concurso annual para o premio d'el-rei D. Luiz I, enviei o manuscripto ao certamen. Depois de ter deixado jazer a obra por dous annos nas carteiras da Academia, entendi não me convir demorar por mais tempo a publicação que hoje faço.

*

Não deixa de ser melancolicamente doce olhar agora, transcorridos vinte annos, para o renascimento de uma obra da mocidade. Quando a vida vae descendo, succede como de tarde, ao caír do sol: acodem á mente impressões de uma serenidade suave. São o prenuncio do acabamento placido. Só quando o remorso morde, ou o gôso estupido nos agita: só então a morte é dolorosa.

Voltando, porém, os olhos ao passado, examinando e julgando, a sós comnosco, o decurso da exis. tencia e a successão dos actos, quando mais não seja, ha um ineffavel prazer esthetico ao reconhecer na vida uma unidade de acção, e nos actos, ainda os menos pensados, a obediencia a um impulso constante de idéas permanentes. De tal modo reconhecemos o que é verdade: que somos os agentes ou vehiculos de um pensamento latente nas obscuras cellulas da nossa creação. Germinam como se

mentes, crescem como arvores,

desabrocham como

flôres, amadurecem como fructos vergam e cáem para o chão, desmanchando-se em pó, e confundindo-se com a terra, para regressarem ao seio do Inconsciente indefinivel.

Voltando, pois, os olhos ao passado, é com um certo desvanecimento que registo a circumstancia de a obra de hoje não differir da de ha vinte annos, nem no seu pensamento inicial, nem nas linhas fundamentaes da sua estructura. Era um esboço lavrado com traço por vezes incerto: agora, procurei esbater os contornos, accentuar as tintas, rectificar o desenho. Os leitores dirão se o consegui.

N'este acabar de seculo, repito, por tantos lados similhante ao fim funebre do seculo XVI, quando morreram Camões e Portugal, o vivo desejo da minha alma é que, se effectivamente está morta a esperança inteira e temos de abandonar a idéa de voltarmos a ser alguem digno de nome vivo sobre a terra, este livro seja como um ramo de goivos deposto no altar do poeta que, morrendo com a patria, lhe cantou o glorioso passado, legando-nos o testamento de um futuro não cumprido.

Maio, 1891.

O. M.

CAPITULO PRIMEIRO

As epopeias

I

Chama-se intuição a faculdade pela qual se nos representam imaginativamente situações ou estados typicos da natureza; e chama-se artista aquelle homem que, dotado sobretudo de intuição, possue o necessario para traduzir symbolicamente, pela musica ou pela palavra, com o pincel ou com o buril, as imagens da sua mente, de modo que provoquem na mente de quem vê, ou ouve, sensações egualmente syntheticas ou typicas.

A arte portanto, não copía, inventa; não reproduz, cria. Não procede segundo a razão, analysando e abstrahindo: vae aos saltos, guiada por illuminações subitas, obedecendo ao genio que a inspira, e lhe patenteia francos os horisontes da verdade, a qual não é o aspecto material e exterior das cousas, mas sim a substancia d'essas mesmas cousas aquillo a que se chama o Ideal. Não ha, pois, arte fóra da realidade; mas não basta repro

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