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gemedos». Os montes não se tinham subvertido, mas essa prophecia symbolica realisava-se, porque se subvertia toda a gente viva. «Lisboa ia acabar

se». i

Quando a Santa Clara fundeou no Tejo, em abril de 70, já a peste se podia dizer extincta. Extinguira-se, é verdade, a gente. «Corria-se toda a cidade e não se topavam cinco pessoas vivas e sans». Foi esta necropole a Lisboa que o poeta veio encontrar, como realidade da Sião chorada na praia macaista e nos campos encharcados do Camboje!

Mas trazia comsigo um talisman, os Lusiadas, que eram a sua propria alma, crystallisada em estrophes. Ao mundo exterior que desabava, contrapunha o seu mundo interior construido e forte, e a necropole parecia-lhe uma miragem: miragem a morte, miragem as ruinas, miragem tudo, e só verdadeira realidade o seu sonho de poeta, o seu livro! Não pensava decerto, cantando «a gente surda e endurecida», levantal-a e dar-lhe ouvidos; pelo contrario, era com violencia e esforço que punha o remate á obra:

Aqui, minha Caliope, te invoco

Neste trabalho extremo, porque em pago
Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,
O gosto de escrever, que vou perdendo.

Vão os annos descendo, e ja do Estio
Ha pouco que passar até o Otono;
A fortuna me faz o engenho frio,

Do qual ja não me jacto, nem me abono;

1 V. Freire de Oliveira, Elem. para a hist. do municipio de Lisboa, 1, 472-7. Da peste grande resta ainda o voto da procissão chamada da Saude.

Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono;
Mas tu me dá que cumpra, ó grão Rainha
Das Musas, co que quero á nação minha. 1

Envolvia-se no poema, como n'uma mortalha, certo de que a vida se lhe fôra, gerando-o; agarrava-se como um naufrago á táboa de salvação que via fluctuar no mar morto da patria sob a figura de um rei novo, arrebatado por uma idéa heroica.

Publicar os Lusiadas, eis o que o agita em 1570 e 1571, e o que finalmente vê realisado no principio de 1572. O applauso foi grande, mas platonico. O poema ficou desde então gravado na alma nacional como o epitaphio da nação que encontrava alli os impulsos que a tinham movido, os sentimentos que a tinham agitado, os amores por que chorára, as esperanças por que suspirára, encontrando tambem agora o pessimismo triste de que se via irremediavelmente ferida.

Os Lusíadas tinham, porém, além d'isso, uma acceitação politica, por cantarem a nova esperança dos governantes n'essa empreza de Africa, para muitos havida como redemptora. Leu-os; não os leu Camões a D. Sebastião? Parece que não leu; mas o rei e a côrte applaudiam com ambas as mãos o enthusiasmo d'esse poeta que, voltando dos confins do mundo carregado de amarguras e trabalhos, tinha ainda no peito alanceado calor bastante para incendiar a todos, communicando a febre que palpitava no cerebro singular de D. Sebastião, a emaravilha fatal da nossa edade!» Pedro d'Alcaçova

1 C. x, 8 e 9.

Carneiro, Martim Gonçalves da Camara, as duas columnas do reinado, enchiam o poeta de louvores.

Anibos, com o rei, amadureciam esse fatal plano marroquino que, iniciado em 1415 com a jornada gloriosa de Ceuta, desde 1498 se subalternisára á conquista da India, depois da viagem de Vasco da Gama. A guerra aos mouros era, no espirito commum, o destino de Portugal nascido no estrepito das batalhas da reconquista. Guerra, porém, na Africa, ou na Asia? Guerra na India, ou em Marrocos? Durante quasi um seculo o Oriente levára a melhor. Marrocos servia apenas de viveiro e escóla para os soldados da India. D. Manoel desistira do plano de passar a Africa. D. João III, surdo aos pedidos para que mandasse um infante a Marrocos coroar-se imperador, pelo contrario abandonára Arzilla e Azamor (1549). A reacção vinha agora, com o novo reinado que, por todas as fórmas, com as leis da navegação, com a organisação do imperio ultramarino, com as reformas agrarias e economicas, pretendia suster a corrente da desordem portugueza e restaurar a gloria nacional, rematando-a com a conquista de Africa, á qual se chamou loucura, por isso que foi mallograda.

Mas a onda da desordem crescia, e essa empreza, que podia ter sido um plano politico em outras éras, tornava-se agora um desvairamento pelo modo como se concebia e por que se executava.

De anno para anno avultavam as desgraças. Dir-se-hia que a mão de um destino inimigo pesava sobre Portugal para o esmagar. Em 1568 fôra a fallencia da pobreza pela reducção do valor do cobre; em 1569 e 70 a peste grande, de recordação funebre; em 1572 uma tempestade destruia a armada enviada em auxilio de Carlos Ix contra os

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turcos e lutheranos; e, no inverno d'esse anno, frios nunca vistos enregelavam tudo, coalhando o proprio Tejo em frente de Alcochete. Os gêlos d'esse inverno deram as cheias de 1573, que inundaram Lisboa; e n'essa éra morreu a rainha mãe, adversaria da campanha de Africa, onde D. Sebastião foi pela primeira vez no anno seguinte. Em 1575, Lisboa, abalada por um grande terramoto, ardeu por metade n'um incendio pavoroso, e o anno acabou em diluvios de chuva que destruiam as ruas. As fomes eram geraes pelas provincias, e a capital via-se inundada de mendigos e leprosos, assaltada de epidemias e mortandades. Dir-se-hia que o mundo portuguez ia acabar, como acabou com effeito. O cometa de 1577 annunciava a morte do rei em Africa e a destruição do seu exercito para o anno seguinte; e o seu rastro fatidico no firmamento nacional eram as lagrimas e clamores provocados de um extremo a outro do reino pelas extorsões, pelas violencias, pelas torpezas com que se arrolavam soldados e se fazia dinheiro, vendendo escandalosamente a impunidade ao judeu o velho inimigo! Mas n'esta propria accumulação de desgraças os espiritos simples viam a necessidade de uma expiação tremenda. Qual? A guerra santa. Era mister aplacar Baal, ou Moloch, ou Jehovah, porque o Deus da nossa gente apparecia-lhe com feições africanas. Hoje vê-se, n'este estado agudo da crise nacional, a propria causa da vertigem que então se apossou da alma portugueza.

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A fatalidade da guerra santa desvaira tambem a alma de Camões, destinada a vibrar sempre accorde com a nação. Quer partir. Recorda os tempos da sua mocidade em Ceuta. Mas vê-se quebrado, côxo, encostado a moletas. O «braço ás ar

mas feito» partiu-se; ficou a «penna ás musas dada» » para cantar a façanha. No proprio dia em que D. Sebastião largou do Tejo para a sua funesta empreza, Camões aparou a penna e começou a sua nova epopeia...

Alongando os olhos á barra, via o mar coalhado de navios que, de velas soltas, pareciam um bando de gaivotas colossaes annunciando um temporal tambem medonho... Eram oitocentos e cincoenta navios, e levavam vinte e quatro mil homens de peleja, tres mil cavallos, e co mais de infanteria san e podre que se não cirandou». Nos caes, nas praias, Lisboa inteira apinhava-se, e circulavam accesas as conversas contando os casos dos ultimos tempos, o açodamento do rei correndo ás naus (de uma vez até esquecêra o chapéo), voltando a terra, inquieto e febril no preparar da expedição; o luzimento dos terços do duque de Bragança; os tres mil tudescos aquartelados em Cascaes; os seiscentos soldados romanos que o Papa mandára sob as ordens do marquez de Lenster... cousas nunca vistas, brigas, rixas e um delirio de luxo, um phrenesi de jogo, com taes requebros de amor, santo Deus! que mais parecia irem a um torneio do que a combater o mouro perfido nos areaes de Africa.

25 de junho de 1578 foi o dia da esperança derradeira que para além voava nas azas brancas das velas, sumindo-se na vastidão confusa dos mares. A noute caíu sobre Lisboa opprimida. Camões voltou a casa, coxeando, e encerrou-se com o seu trabalho: a epopeia d'Africa, a Sebastianeida; Portugal resuscitado pelo heroismo de um rei, a patria, cabeça do mundo reconquistado para a fé; uma gloria immensa, uma felicidade incomparavel; outra vinda de Christo á terra, encarnando na figura d'este ra

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