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de um tumulo, a Hespanha já destruida, quando vinha arrogante receber em Lisboa as chaves do palacio abatido, cuja cupula tombára em Alcacerquibir. Que immensos crimes, que actos nefandos commetteram esses povos assim martyrisados? Sonharam, cantaram, bateram as azas para o céo, a mostrar o caminho ao mundo. A França, destinada pela geographia e pela historia ao papel de equador ethnico, insistia no seu proposito de fundir pelo espirito e pela ordem as duas faces do mundo europeu, a germanica e a latina. A Italia, balouçada entre duas vagas somnambulas, mas tragicas, o Papado e o Imperio, aspirando á unificação do mundo e á restauração de Roma, consumia-se nas lembranças do passado, desvairada no presente pela expansão anarchica da força, pela invenção delirante da arte: via-se outra vez o homem antigo surgindo das ruinas das revoluções modernas. A Hespanha, finalmente, prostrada aos pés da Cruz, allucinada por um delirio mystico, votára-se á reconquista do mundo para Deus, adorando-o com os impetos da alma mosaica, e depondo-lhe aos pés, como os carthaginezes aos pés de Moloch, os thesouros arrancados com ferro e fogo pelas Americas e pelas Indias.

E que faziam, entretanto, as grandes nações de hoje, as felizes, as ricas? Iam fundindo e limando a immensa dentadura de aço com que haviam de devorar o Meio-dia, para se fartarem. Loucas! pois lhes succede como á serpente que, depois de saciarse, adormece como que morta. Produzem, compram, vendem, e ingerem muito: os queijos, a carne succulenta e gorda e o alcool, que serve para alcançar, n'uma embriaguez bestial, esse esquecimento da vida, estado negativo indispensavel, que nós, os

doudos, attingiamos, porém, n'uma embriaguez divina, perdendo-nos nas nevoas da allucinação mystica, ou nos ardores d'um heroismo fecundo.

Ainda no proprio ponto de vista utilitario, posteriormente dominante: ainda n'esse, valemos mais.

II

Tres factos culminantes caracterisam em Portugal essa ancia de viver que, por toda a Europa, é dominante na Renascença, depois da severa e longa quaresma medieval. Toda a energia d'este povo crystallisa em tres actos: o imperialismo politico, as descobertas e conquistas, o absolutismo religioso.

Terminára o longo debate dos poderes rivaes durante a Edade média: a Egreja, herdeira da civilisação classica e mandataria de um Deus feito de caprichos; a nobreza feudal, nascida no tumulto das guerras; e a monarchia que, saíndo por selecção da assembléa dos guerreiros, logo chamára a si o auxilio da tradição imperialista da Antiguidade. D. João 11, que foi em Portugal o principe-perfeito de Machiavel, o homem, como lhe chamavam em Hespanha, esmagára com o punhal e o cadafalso a veIha nobreza goda, para D. Manoel depois, chamando reforma dos foraes á destruição das liberdades concelhias, extinguir o localismo que democraticamente reproduzia nos municipios um espirito de autonomia correspondente ao dos senhorios. A unidade da nação, acabada, encontrava o seu symbolo no monarcha; e o genio da Renascença denunciava-se tambem fazendo, como diz Burckhardt, do estado uma obra d'arte.

O mesmo espirito synthetico ou heroico nos levava para a descoberta e conquista do mundo inteiro e para a sua unificação n'uma fé, alma ardente d'esse corpo enorme que apparecia vivo e palpitante á imaginação dos homens. Não se comprehende a Renascença, cujo pensamento visceral é o idealismo, sem o absolutismo da fé: a imagem ficaria imperfeita, o senso esthetico protestaria.

Esse absolutismo da fé, que agita em guerras a Europa, complica-se em Portugal (e na Hespanha) com a velha questão dos judeus, e com o odio historico aos mouros. Depois de repellidos da Peninsula, fomos combatêl-os em Africa e no Oriente, sanccionando assim para a religião e para a historia os lances a que principalmente outras causas nos moviam.

O caso dos judeus era mais remoto e mais complicado. Essa raça nomada no seio da Europa culta, raça escravisada desde o tempo dos Pharaós, insinuára-se na Peninsula com os carthaginezes, vivêra á sombra dos romanos, e na catastrophe do Imperio obtivera vingança tyrannisando humildemente, como sempre, a Hespanha goda, para a atraiçoar depois, abrindo as portas aos arabes de Marrocos. O odio ao judeu vinha enraizado desde os tempos. visigodos e fazia explosão na Renascença.

N'esse odio envolviam-se outros sentimentos menos nobres: a inveja, a cobiça. A capacidade capitalista do judeu, innata ou adquirida em gerações successivas mantidas na condição de espurios, sem patria, e sem a propriedade que moralisa o homem, irritava o povo afflicto pelas miserias contínuas da Edade-média. Os judeus, esses malditos de Deus, eram os banqueiros dos reis, viam-se ao lado dos grandes, monopolisavam o dinheiro, enriqueciam

com a ušura, «e posto que de todos sejam zombados, possuem a grossura da terra onde vivem mais folgadamente do que os naturaes, porque não lavram, nem plantam, nem edificam, nem pelejam, nem acceitam officio sem engano. E com esta ociosidade corporal, n'elles se acha mando, honra, favor e dinheiro: sem perigo das suas vidas, sem quebra de suas honras, sem trabalho de membros: sómente com seu andar miudo e apressado que ganha o fructo de todos os trabalhos alheios ». 1

Esta contradicção flagrante, ultraje simultaneo á alma religiosa e ao senso esthetico, accendia-se no amor desenfreado da vida e da riqueza que assaltava os espiritos e os levava pelos mares longinquos em busca das ilhas de ouro e dos continentes onde os rios rolavam diamantes e esmeraldas. A phantasia do ouro enchia todas as cabeças: uns condemnavam-n'o como um demonio, quando era judeu; outros levantavam-lhe altares como a um deus. quando o ouro servia a propagar a fé, a augmentar o imperio, a completar a harmonia sublime d'esse mundo que, abraçado por inteiro, seduzia tambem os espiritos com os encantos de uma

obra d'arte.

Da Jamaica escrevia Colombo aos reis catholicos, dogmatica e theologicamente: «El oro es excelentissimo: del oro se hace tesoro, y con el, quien lo tiene, hace cuanto quiere en el mundo y llega á que hecha las animas al paradiso!» E Shakespeare arrebatado exclamava:

Gold, yellow, glittering precious gold!

1 João de Barros, Rhopica Pneuma ou merc. esp. (1552).

Esse ouro soberano e libertador, com o qual o homem é omnipotente na terra e até póde conquistar o céo, era, porém, a propriedade do judeu, cujo riso sardonico envenenava a cobiça faminta do christão. Da raiva saíu a furia, da impotencia a crueldade. Por isso os judeus foram exterminados; e d'essa longa historia resultou, não diremos, como tantos, a ruina industrial do paiz, pois o judeu era apenas usurario, mas um estado de excitação nervosa, em que a idéa da razão d'estado, transcendentalisada, desvairou inteiramente os espiritos e precipitou o povo em allucinações funebres, lançando os governos nas mãos da policia inquisitorial.

O imperialismo dominante na politica prestava as suas maximas á vida espiritual, que por essencia é insusceptivel de policia. A obra d'arte do estado ideal apparecia como um monstro medonho, e o heroismo como a estatua lendaria de Nabuco, assente sobre pés de uma lama ensanguentada. «Quasi que não tenho ja forças para me soster sobre as pernas, • tão cheio de uzagre por todo o corpo que me falta pouco para me darem por leprozo». Estas palavras de Damião de Goes retratam a situação. A Inquisição, perseguindo tudo, por toda a parte produzia a cachexia e as ulceras. Reinava a ferocidade e o mysticismo, a devoção e a cobiça ingenuamente divinisada. Assim como o infante que pellou a cabeça do judeu com terebinthina e Îhe deu uma indigestão de toucinho: assim o jesuita desnudava os textos da Antiguidade e introduzia nos cerebros da geração nova o alimento desenxabido de um humanismo emmasculado.

De tudo isto saía uma côrte nova, onde, reformados os foraes, já se não ouvia a voz dos procuradores das terras, alternando com a dos velhos

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