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Flandres 1, todos somos nobres e é uma grande deshonra exercer publicamente uma profissão. Imaginaes que a mãe de familia vae ao mercado, compra ahi peixe e prepara burguezmente uma caldeirada? Uma mulher nada possue que seja de utilidade pratica, á excepção da lingua e de certo artigo que constitue o seu titulo de casada. Ainda que désse a quarta parte dos meus ganhos, não encontraria uma mulher que consentisse em cuidar-me da casa, como se costuma no nosso paiz. Como diabo viveis então? perguntareis vós. Os escravos pullulam por todos os lados. Todo o serviço é feito por negros e mouros captivos».

O genio pratico e burguez do belga não se irrita, mas desdenha d'este modo de vida de uma sociedade cuja virtude lhe não é dado aperceber. Vê-lhe só o lado grutesco. Essa fidalguia vaidosa que dá de si a fanfarronice pelintra, é apenas a caricatura da realidade que produz o desinteresse heroico. O idealismo, porém, é como o vinho: se tonifica, embriaga tambem; e a propria causa da força torna-se em origem do abatimento.

Todos os bons espiritos se offendiam com o caminho que as cousas tomavam, e dos factos mais notados é com effeito o progresso numerico dos escravos. Garcia de Rezende, na sua Miscellanea, diz:

Vemos no reyno metter
Tantos cativos crescer,
E irem-se os naturaes,
Que, se assim for, serão mais
Elles que nos, a meu ver.

1 V. as cartas de N. Cleynarts, nos Ann. das Sc. e Lettr., da Acad. de Lisboa.

«As cousas da India fazem grandes fumos! » exclamava Affonso d'Albuquerque; e Sá de Miranda, o que denunciava «a clara peçonha dos mimos indianos», dizia

Que o cheiro d'esta canella
O reino nos despovoa.

Damião de Goes orça em dez ou doze mil os escravos importados annualmente do Ultramar em Lisboa, cidade mascava, cuja quinta parte da população era serva e negra.

Voltando aos fidalgos, Clenardo escrevia:

«Ha muitos que não são mais ricos do que eu e andam acompanhados de oito creados que sustentam, não direi com abundante alimento, mas á fome, á sêde e por outros meios que sou demasiadamente estupido para aprender nunca em dias de minha vida. Afinal, não é custoso recrutar uma turba inutil de servidores, posto que esta gente tudo prefere å fadiga de tomar qualquer profissão. Mas para que serve um tal sequito? Vou-me explicar: se os tratantes são de uma formal preguiça, qualquer d'elles emprega-se n'uma d'estas cousas: dois caminham adiante, o terceiro traz o chapeu, o quarto o capote, se por acaso chove, o quinto pega na redea da cavalgadura, o sexto toma-vos conta dos sapatos de seda, o setimo de uma escova, o oitavo mune-se de um panno de linho para limpar o suor do cavallo, emquanto seu amo ouve missa, ou conversa com um amigo. O nono offerecer-vos-ha um pente para alizar os cabellos, se tendes de cumprimentar alguem de importancia...>>

Taes são os magnatas, abaixo dos quaes véem os fidalgos de segunda ordem, pagens e escudeiros, especie de criadagem nobre. Na farça de Quem tem farellos, vêem-se dous moços de dous escudeiros, conversando. Apparicio diz do amo:

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E' exactamente o banquete de que nas suas cartas Clenardo falla, quando descreve o rol das compras de um fidalgo portuguez: «Quatro ceitis para agua, dois reaes de pão, um real e meio de rabanetes>> -o rábão engelhado da farça de Quem tem farellos. Toda a semana, observa Clenardo, se repete o rol, até ao domingo que traz a seguinte apostilha: «Hoje nada, por não haver rabanetes na praça».

Assim se alimenta o escudeiro, de pão e rabanos á ceia. A gente peninsular é sobria. Tira ao estomago para dar de comer á imaginação. Que importa o resto, se podér pavonear-se, vaidoso como um gallo, em frente da janella da sua amada, de gibao bordado e chapéo de plumas fartas? Qualquer pequena tença suppre o orçamento de pão e rabanos, do gibão e das cordas da viola namorada. Porém o magnata, fidalgo de raça que tem de apparecer na côrte, deslumbrar com o luxo, apresentar um estado, astro movendo-se na orbita

do sol regio, recebendo a luz d'elle, mas cumprindo tel-a sua propria, que ha de fazer senão lan

çar-se

Por contentar o Rei, no officio novo

A despir e roubar o pobre povo? 1

E fazia-o desa piedadamente. Nem podia ser de outro modo. A invasão da pimenta e da canella da India, «cujo cheiro despovoava o reino», reduzindo-lhe os habitantes a metade, tinha paralysado o progresso economico da sociedade, estancando as fontes da sua riqueza. Encarecia tudo disparatadamente, a começar pelo pão que triplicára de custo e pela carne que era um objecto de luxo. E as difficuldades passavam dos orçamentos particulares para o do rei, que no tempo de D. Manoel começou a viver de emprestimos com os cambios de Flandres e com a venda de padrões de juros, de que se abusou a ponto de já não haver na Europa judeu que os quizesse comprar a D. João III. A divida publica portugueza vem d'então.

Este phrenesi do gasto leva a aberrações como a d'aquelle fidalgo que reclamava para si o monopolio dos lupanares de Portimão; e alludia a elle Gil Vicente nas suas trovas:

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Era só um vicio da fidalguia? Não; era o vicio, a loucura de toda a gente; nem já existiam, no turbilhão das aventuras novas, as raias divisorias de classes: diariamente se assistia ao ennobrecimento dos que, partindo obscuros para a India, de lá voltavam com a fidalguia segura e certa nos thesouros arrecadados em arcas nos porões das naus de viagem:

Bem sabes tu, Pero Vaz,
Que fidalgo ha ja agora
Que não sabe se o é.

*

Passemos da côrte para a egreja, a vêr a clerezia n'esse momento illuminado pela penna de Gil Vicente, e que, succedendo ao mysticismo medieval, precede o fanatismo funebre do fim do seculo XVI.

Como seria o clero sob o papado de Leão x, o sybarita, que sorria desdenhosamente das «bulhas fradescas» de Luthero, extasiado como um pagão, na sua côrte de artistas, perante os deslumbramentos da embaixada sardanapalesca d'el-rei D. Manoel?

Feirae o carão que trazeis dourado

O' presidente do Crucificado

Lembrae-vos da vida dos santos pastores
Do tempo passado. 1

O meridional não protesta como o inglez e o allemão. Ou absolve tudo na comprehensão idealista

1 Gil Vicente, auto da Feira.

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