Quem o soccorre, porém, é Venus, porque na estructura do poema, acima dos sentimentos religiosos dos homens, está o côro dos antigos genios em que a imaginação tem de corporisar ainda os elementos naturaes, pois que as creações amorphas da psychologia christan não teem essa capacidade. Na Renascença, o mundo era outra vez pagão, de um modo até certo ponto novo: como poderia exprimir-se, pois, na linguagem espiritualista da transcendencia medieval? O paradoxo dos Lusiadas é o de todas as artes da Renascença, e traduz o estado de plasticidade comprehensiva d'essa época. Quando, porém, a alma se eleva até ás culminações da piedade, como pincaros rasgando o ether, e os symbolos e mythos apparecem comparaveis á neblina dos valles vista do alto das montanhas: então resplende na sua nitidez ideal a palavra sagrada Deus. O Gama sente-se penetrado e cáe de joelhos quando vê a terra de Ĉalecut: Soffrer aqui não pode o Gama mais, E quando tambem, dissipado o mêdo, surge a esperança viçosa, a alma enche-se de uma alegria purissima, em que da mesma fórma se dissipam os nevoeiros do symbolismo religioso. Assim que o Adamastor acabou a serie das suas prophecias funebres, o Gama, cheio de piedade: 1 C. VI, 92. levantando as mãos ao sancto coro Entre a piedade dos homens, entre a sua fé positiva e a região etherea das verdades metaphysicas expressas por uma theologia que procura ser orthodoxa, a imaginação creadora da Renascença. põe como medianeira a Natureza, representando-a nos mythos litterarios herdados da Antiguidade. As approximações que vamos observar entre Virgilio e Camões não se devem considerar, portanto, como simples imitações litterarias, embora o cultismo classico as determinasse; pois esse mesmo cultismo penetrára tanto os espiritos, fazia tanto parte da consciencia contemporanea, que Virgilio, o medianeiro na Edade-média, apparecia agora como o positivo apostolo de um pensamento historico. Se o proprio Virgilio imitou filialmente a Homero, porque Eneas e os romanos via-os descenderem da Troya grega: Camões seguia na esteira da derrota virgiliana, por isso mesmo que tambem nos Lusiadas via os descendentes da gente romana. Desde o primeiro verso, logo na primeira proposição As armas e os barões assinalados se sente o proposito de vasar os Lusiadas nos moldes classicos da Eneida, que começa: Arma virumque cano; e de os vasar n'esses moldes, repetimos, não por uma fria imitação poetica, mas por 1 C. v, 60. uma affinidade de estados moraes, e por uma ambição voluntaria de reproduzir a grandeza romana. O Gama claramente chama para si a fama de Eneas. 1 Logo em seguida, a dedicatoria a el-rei D. Sebastião: 2 Tethys todo o ceruleo senhorio Tem pera vos por dote aparelhado ; 3 é a paraphrase litteral do verso virgiliano: Teque sibi generum Tethys emat omnibus undis. 4 7 Protheo apascenta o seu gado, 5 exactamente como o pinta o mantuano. E todo o concilio olympico, um dos mais bellos episodios do poema, e onde se lhe estabelece a sua fabula: todo elle está cheio de reminiscencias. A propria idéa de fazer dos portuguezes instrumentos das divindades pagans reunidas em concilio, é reminiscencia, e mais do que isso ainda. Venus é a nossa protectora, como fôra dos romanos. A inimisade de Juno acha-se substituida pela de Baccho, primeiro conquistador da India, cuja fama seria obscurecida pelos portugue zes: O padre Baco ali nam consentia 1 Coelicolae magni, começa por dizer Jupiter no concilio virgiliano, e quando Camões se exprime d'este modo: Eternos moradores do lusente Estellifero Polo e claro assento, 2 vê-se a distancia que ha entre a Eneida e os Lusiadas no logar conferido aos olympicos, apesar de Virgilio não arder já na crença de que elles regessem de facto os destinos do mundo. Acima, estão os fados que determinam o caminho das cousas : fata viam invenient. 3 Mas, na sua concisão epigraphica, o latim exprime ainda o respeito devido a ruinas; ao passo que a exuberancia litteraria de Camões attesta a preoccupação de artista, sentindo a necessidade de symbolisar forças naturaes a que os seus heroes obedeçam, e não encontrando esses symbolos fóra do paganismo: Quando os Deoses no Olimpo luminoso, Deixão dos sete Ceos o regimento Estava o Padre ali sublime e dino De outra pedra mais clara que diamante. Em luzentes assentos, marchetados Cum tom de voz começa grave e horrendo... 1 Abre-se a sessão. Jupiter expõe o caso dos portuguezes; Baccho ataca-os; Venus acode em defeza; Marte vem em seu auxilio; ha um tumulto: Qual Austro fero ou Boreas, na espessura Entre os Deoses no Olimpo consagrado. 2 In segetem veluti quum flamma, dissera Virgilio; 3 e como na Eneida, Jupiter Adnuit, et totum nutu tremefecit Olympum. Surgit; cœlicolae medium quem ad limina ducunt, 1 C. 1, 20-23. 3.-2 35. 3 Eneid. 11, 304. X, 115-7. |