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ESTANCIA LXXI

Tamanho o odio foi e a má vontade
que aos estrangeiros subito tomou,
sabendo ser sequaces da verdade
que o filho de David nos ensinou.
Oh segredos d'aquella Eternidade,
a quem juizo algum não alcançou.!...
Que nunca falte um perfido inimigo
áquelles de quem foste tanto amigo!

LXXI

Tamanho foi o odio e a má vontade que subito tomou aos estrangeiros, sabendo serem sequazes da verdade que no ensinou o filho de David. Oh segredos d'aquella Eternidade a quem não alcançou juizo algum ! Que nunca falte um perfido inimigo áquelles de quem foste tão amigo!

Vs. 1 e 2) Tamanho o odio foi e a má vontade, tamanho foi o odio e a má vontade. Tamanho, na significação de tão grande, pedia depois de si o correlativo que (tão...que, loc. conj. consecutiva) o qual não se encontra no resto do periodo constituido pelos quatro primeiros versos, pois o que do v. 2.o é pron. relativo referido a odio e má vontade; assim, ficaria o sentido em suspenso; deve, pois, ser tomado no sentido de mui grande;o odio foi e a má vontade o suj. do verbo foi, sendo composto (odio e má vontade), devia o verbo vir no plural, mas pode vir no singular por um d'elles estar depois do verbo ; melhor, porem, se deve entender que, por zeugma, se omitte junto do segundo, o odio foi e foi a má vontade; - má vontade. Boa ou má vontade, disposição favoravel ou desfavoravel para qualquer pessoa ou cousa o mesmo que no v. 4.° da est. 69. Aos estrangeiros; a prep. a está aqui no mesmo emprego que a prep. contra, designando opposição; estrangeiros, o mesmo que extrangeiros (do latim extraneus), de outro paiz relativamente a elle, mouro;

subito, adv., subitamente, promptamente, repentinamente; tem a mesma significação quando precedido da prep. de, formando loc. adverbial (de subito); — tomou; o verbo tomar está aqui na significação de sentir (alguma impressão), ser acompanhado ou assaltado por (falando de algum sentimento); no mesmo emprego que no C. IV, est. 18,

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E se com isto emfim vos não moverdes
Do penetrante medo que tomastes,

do

Vs. 3 e 4)- Sabendo ser sequaces da verdade etc. Sabendo, logo que soube; o gerundio está aqui empregado como «absoluto», isto é, tendo sujeito proprio e formando oração à parte; ser, que eram (sujeito occulto: os portuguezes, os navegadores); o infinito, n'este caso, é empregado formando oração e com sujeito proprio, embora subentendido, pelo que, em rigor, deveria empregar-se na forma pessoal (sabendo serem sequazes, etc.), mas a conveniencia verso explica a incorrecção syntactica, evitando assim uma syllaba a mais; Sequaces, sequazes, que seguem, que acompanham, partidarios. sectarios; sequaces, é forma antiquada (do latim sequax, sequacis), como veloces, no v. 2.o da est. 46; -da verdade, das verdades ; que o filho de David nos ensinou. Filho, descendente. David, rei de Israel (1) (1040-1016 a. J.-C.), successor de Saul, venceu os Philisteus (2) e fundou Jerusalem (X.° sec. antes de J.-C.); poeta

(1) Israel, antigo reino dos judeus; em especial, um dos dois reinos que se formaram na Palestina (a), por morte de Salomão, filho e successor de David (vid. pag. 11,; e que comprehendia 10 tribus.

(2) Philisteus, antigo povo da Asia, mas oriundo de Creta. Estabelecidos entre a Syria, o Mediterraneo e o paiz de Joppé, tinham como cidades principaes Gaza, Ascalon, Ashdod, Ekron e Gad. Chegaram a dominar a Judeia, mas, por sua vez, foram subjugados pelos judeus a quem foram compellidos a pagar tributo, depois de vencidos por Saul e David. Desaparecem da historia pelos meados do sec. VII.

(a) Palestina, região da Syria, entre a Phenicia ao N., o Mar Morto ao S., o Mediterraneo ao O. e o deserto da Syria a E., banhada pelo rio Jordão. Na Escriptura Santa é tambem denominada Terra de Chanaan, Terra promettida e Judeia.

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e propheta, deixou psalmos (1) impregnados d'uma magnifica inspiração lyrica; antes de ser rei, quando era ainda simples pastor, matou em combate singular o gigante Golias com uma pedra despedida pela sua funda. O filho de David, é periphrase de Jesus-Christo; filho (descendente) de David, por ser S. José da geração de David, segundo o Evangelho de S. Matheus (liv. I). Na leitura do verso não se deve pronunciar o d final de David, para que, prosodicamente, não haja uma syllaba a mais ; nos, aos homens; dá-se aqui a fig. synedoque (a especie pelo genero) e tambem a fig. communicação (2); ensinou, deu a conhecer.

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Vs. 5 e 6)-Oh segredos d'aquella Eternidade, etc. é a fig. «Exclamação» (3). E' esta a primeira vez que, no poema, Camões usa d'esta figura, empregada como sentença, pelo qua a exclamação toma em especial o nome de «Epiphonema» (3); tornará a empregal-a na est. 105

Oh grandes e gravissimos perigos!

Oh caminho da vida nunca certo!

e desde a est. 92 do C. V, desde a 95 do VI e nas primeiras e ultimas do C. VII, nas 54, 55, 89 e ultima do Č. VIII e nas finaes do IX e doX, como veremos quando alcançarmos esses logares. Na presente estancia o Poeta rompe com uma exclamação ajustada ao successo que vae narrrando. admirando e reconhecendo ser alto juizo de Deus o permittir que aquelles, que seguem a sua verdadeira lei se vejam expostos ao furor e odio dos que a postergam. Segredos, mysterios, arcanos, razões occultas;-d'aquella Eternidade, do Deus eterno, de Deus;=juizo, razão; algum, pron. indefin., empregado como adj., variavel; posposto ao subst., equivale a nenhum, mas tanto Camões como outros classicos o empre

(1) Psalmo (liturg.) cantico sagrado. Psalmos de David, obra prima da poesia lyrica, um dos mais admiraveis livros da Biblia pelo brilho das imagens e a majestosa grandeza dos assumptos. São, ainda hoje, entre os judeus, o canto liturgico por excellencia, e a Egreja Catholica d'elles faz a propria base do officio divino.

(2) «Figs. d'estylo», pag. 43. (3) «Figs. d'estylo», pag. 76.

garam, com o sentido de affirmação; comprehender.

alcançou, chegou a

Vs. 7 e 8) Que nunca falte um perfido inimigo, etc., um d'esses segredos (ellipse) é que nunca falte um inimigo; -perfido, desleal, traidor, falso, traiçoeiro ; A'quelles ;quando o artigo feminino a, as e bem assim os pronomes demonstrs. aquelle, aquella, aquelles, aquellas, aquillo, são precedidos da prep. a, a vogal inicial do artigo ou pronome funde-se com a preposição formando um só som (á, ás, áquelle, áquella, áquelles, áquellas, áquillo); o mesmo acontece quando a, as, é pronome demonstr. propriam. dito. Dá-se em taes casos a fig. «Crase» (1); de quem foste, de quem tu, oh Christo, foste, é a fig. apostrophe (2); - tanto amigo, tão amigo.

(1) Figs d'estylo», pag. 6.
(2) «Figs. d'estylo», pag. 79.

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ESTANCIA LXXII

Partiu-se n'isto emfim, co'a companhia,
das náus o falso Mouro, despedido
com enganosa e grande cortezia,
com gesto ledo a todos e fingido.
Cortaram os bateis a curta via
das aguas de Neptuno, e, recebido
na terra do obsequente ajuntamento,
se foi o Mouro ao cognito aposento.

LXXII

N'isto, o falso Mouro se partiu emfim das naus com a companhia, despedido com enganosa e grande cortezia, com ledo e fingido gesto para com todos. Os bateis cortaram a curta via das aguas de Neptuno, e, recebido o Mouro em terra pelo obsequente ajuntamento, se foi ao cognito aposento.

Vs. 1 e 2) Partiu-se, retirou-se ; -- n'isto, n'este meio tempo, n'esta occasião, entretanto; assim, no C. VI, est. 72:

O ceu fere com gritos n'isto a gente
com subito temor e desacordo ;

=das

Co' a companhia, com o acompanhamento, com a gente que o tinha acompanhado a bordo; co' a, com a (ecthlipse); = d as náus; a prep. de indica logar d'onde. Dá-se aqui a fig. hy perbaton; ordenando os dois versos convenientemente, ficará: N'isto, o falso Mouro se partiu emfim das naus com a compa nhia etc.;-falso, desleal, perfido, traidor; despedido, subentende-se tendo-se, tendo-se despedido.

Vs. 3 e 4) Com enganosa e grande cortezia. Enganosa, que envolve engano, enganadora, por encobrir com taes modos o

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