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explicações seguiram-se as do architecto, que | referiu summariamente quanto ouvira a Fr. Julião e a_ Gonçalo d'Ayola no terraço do convento. Enganou-se, porém, julgando que, por distrahir para esta tentativa que presup punha o estar vivo D. Francisco de Portugal, o espirito de sua irmã, the acalmaria os lugubres receios que a inquietavam. A dama, tendo-o escutado até ao fim, exclamou: 99% E' horroroso o que me contastes! Se por um acaso pouco provavel meu irmão escapou ao furor dos moiros, virá a succumbir, senão succumbiu já, aos golpes de um sicario infame! Ai de mim! Ai de mim! Se a Providencia tinha destinado tamanha desgraça, mais valera não me terdes salvado a vida, Martim Lourenço, zaly ona silm sb ollinj -Assocegae-vos, senhora; partirei immediatamente para Africa a fim de obstar á perpetração do crime.

E

-Estará, por ventura, vivo ainda meu • estiver, como impedireis o crime ignorando quem o ha de commetter? Buscareis debalde o assassino, que porá talvez por obra seu damnado intento, quando menos o pensardes.

Prevenirei o sår. D. Francisco....

Não ha de acreditar-vos, ou sómente, porque não pareça ceder ao sentimento do medo, continuará a expôr-se.

Não deixarei um só instante de o vigiar. Seguil-o-hei por toda a parte. Se tanto for mister, sacrificarei a propria vida para salvar a de vosso irmão...

- O quê? Exclamou a donzella com redobrada angustia. Sacrificarde'vos por D. Francisco! E eu que, sem attender a mais que ao amor fraternal, não me lembrava se não dos perigos que ameaçam a meu irmão! Oh! Isso não pode, não deve, não ha de ser! Jurae-me, săr. Martim Lourenço, que em caso nenhum vos exporeis á morte.

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em Africa, de modo algum me deixará consentir que, para o salvar, exponhaes outra vez a vida.

As vossas palavras são um doce balsamo de consolação para quem tão desconsolado tem vivido até ao dia de hoje. Gravadas me ficarão para sempre na memoria, e de modo tal que primeiro do que ellas se apagará a luz do sol que nos allumia.

de Sois egoista, sår. Martim Lourenço ! Contentaram-vos as minhas palavras, e não quereis contentar-me com o juramento que vos pedi.

-E'impossivel, sr. D. Beatriz. Sem grande razão para isso terdes, receiaveis ainda ha pouco pela vida do sår. D. Francisco. Pela minha receiai agora com menos razão ainda. Cega-vos o temor de imaginarios riscos. Ora, aquietae-vos, que nem por vosso irmão, nem por mim tendes que temer. E já agora, permittir-me-heis que vos pergunte, nobre senhora: Que é de vosso esforçado animo, d'aquella varonil coragem com que de outras vezes vos tenho visto affrontar verdadeiros perigos, e muito menos contrastaveis que os que o sår. D. Francisco e eu poderemos vir a correr em Africa?!

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- Não me cega o temor, nem me falta o animo, como dizeis, Martim Lourenço. Ameaçasse-me o perigo a mim só, que me não descobririeis de certo a menor perturbação. Mas os ameaçados sois vós e D. Francisco. Meu irmão, cercado pelos moiros o castello d'Arzilla, estava exposto a morte quasi certa, e, se por misericordia divina escapou, não tardará muito que não venha a cahir nalguma cilada infame. Desattenderá todos os vossos avisos e inutilisará os vossos esforços. Aos meus rogos sómente, à minha afflicção, teria algum respeito. Se foi ferido, ou o vier a ser, ninguem como eu o poderá tractar de suas feridas e mitigar-lhe os soffrimentos. Não vos deixarei, pois, partir só. Acompanhar

-Jurarei, se não prescindis do meu juramento, que não hei de expôr-me sem necessi-me-heis a Africa... dade. Al não posso jurar.

-Não basta. Quero que jureis sem restricção alguma.

Obedecer-vos-hei quando me ordenardes o que for exequivel. Não espereis de mim um juramento, cujas fataes consequencias vosso irmão e vós propria poderieis vir a soffrer. Porém, que vos importa a vós, senhora, a vida de um homem, cuja falta ninguem sentirá no mundo?

-Ninguem? Enganaes-vos, Martim Lourenço, ou antes sois injusto em suppôr que á Vossa dedicação illimitada não respondem noutros corações a amizade e o reconhecimento a que obrigam vossas nobres qualidades. Por mim direi que o muito que vos devo jamais me esquecerá. Nunca vos parecerei desagradecida ou deslembrada. Por maior que seja o perigo que meu infeliz irmão corra

Que dizeis, senhora! E' impossivel, absolutamente impossivel! Não considerais que augmentará assim o perigo em vez de diminuir? Grande honra seria para mim o acompanhar tão nobre dama. Reflecti, porém, que em vossa companhia nem chegarei tão depressa aonde muito necessario sou, nem terei alem do Estreito a liberdade de que preciso para conseguir o fim que alli me conduz.

Objectae quanto quizerdes, Martim Lourenço, que não acabareis commigo a mudar de resolução. Hei de partir. Que longos dias não teriam de volver para me chegarem novas de meu irmão e vossas? Esperal-as seria para mim o maior e o mais horrivel dos tormentos.

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or Tambem de certo não attendeis que o incendio da guerra, ateiado pela vinda do exercito do rei de Fez a Arzilla, vai redobrar

de furor com a partida das tropas que no Algarve se aprestam. Nas aguas do Estreito e nas terras africanas cada vez hão de tornar-se mais e mais temerosos os perigos que a uma dama não convém affrontar.

Não serão elles sómente para meu irmão e para vós. Correl-os-hei eu tambem, e a sorte de um quero-a eu commum para todos.

-Lembre-vos, sr." D. Beatriz, que damas não são cavalleiros, e que, pondo por obra vosso intento, vireis a incorrer numa grave e geral censura.

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Mas immerecida. Não sabeis, por acaso, dos memoraveis serviços prestados por D. Isabel de Castro e por suas damas no cerco de Alcacer? Não tractaram ellas os feridos e animaram os combatentes de modo que tanto ás damas como aos cavalleiros se ha de attri buir o exito glorioso da heroica defesa de D. Duarte de Menezes ?

Passaram já os tempos cavalleirosos de D. Affonso V...

-Não desappareceram, porém, com elles todos os grandes e nobres corações. A condessa de Borba estava com seu marido quando os moiros entraram em Arzilla. Quem ha de pois impedir que eu corra e acompanhar meu irmão nos perigos que o cercam, a resgatal-o se o captivaram, a prestar-lhe os cuidados de que ha mister, se o feriram, a chorar emfim sobre sua sepultura, se por infelicidade succumbiu aos golpes dos infieis?

-Impedir-vos-hei eu, senhora, com a força de minhas razões, pois alguma hei de encontrar a que não possaes resistir.

-Não vos tenho rebatido as que me haveis proposto? O mesmo farei a quaesquer outras. - Crêdes que aproveitará ao sir. D. Francisco de Portugal a minha presença em Africa?

-Creio. Ninguem melhor do que eu conhece e aprecia vossa coragem e dedicação.

Acreditaes tambem que a demora de um dia, de algumas horas, poderá ser depois lamentada, como obstaculo unico á prevenção de um mal que, sem ella, se teria prevenido?

-Acredito. Não vos demorareis, porém, por minha causa. Levarei commigo uma só de minhas damas. Correreis quanto quizerdes até ao Algarve, que vos fio que não ficarão atraz os nossos ligeiros corseis.

- E' inabalavel a vossa resolução? -Inabalavel.

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Porquê? thamesmerise sougaoilye -Porque eu amo-vos, D. Beatriz de Por tugal! a e ofilel A donzella soltou um grito, que exprimia talvez mais de um sentimento. Martim Lourenço continuou: ding

Amo-vos! Amo-vos! Oh! Como é grato a deleitoso dizer-vos que vos amo! Que prazer de ineffavel doçura ouvir, ouvidas tambem por vós, estas palavras que até agora sómente ousava pronunciar na solidão ou em segredo! Sou muito venturoso! Imaginai a alegria do captivo a quem tiram de repente as algemas que lhe confrangiam os pés, o prazer da avezinha que ao despontar a primavera escuta os seus gorgeios incipientes, o jubilo da mãe que pela vez primeira chama filho ao primogenito recem-nascido; pois o captivo, e avezinha, a mãe não são nesses momentos mais felizes do que eu ao sentir os labios desaffrontados do sello que tanto tempo os teve presos e opprimidos!

A dama fez um gesto para interromper o architecto, que, sem dar-lhe occasião de fallar, proseguiu :

Ai de mim! Venturoso me chamava eu, e não attendia que a esta ephemera ventura seguir-se-ha talvez o eternal tormento de nunca mais tornar a ver-vos! E, se o destino vai separar-nos, se eu tenho de morrer para vós, porque não haveis de ouvir-me? Haverá alguem tão cruel, que se refuse a ouvir as derradeiras palavras d'aquelle que, similhante ao moribundo, vai partir para sempre? Oh! Tende compaixão de mim! Deixae, ao menos, que eu desafogue em palavras o sentimento que tanto me tem custado a reprimir dentro no peito! Sim! Ha muito que vos amo, senhora, e não vol-o deixava descobrir ou a alguem no mundo! Este amor, fadado sem esperança logo ao nascer, queria eu que só commigo vivesse e commigo tambem morresse. Queria que fóra da minha alma não ficasse d'elle outra memoria. Queria, emfim, que ninguem houvesse de rir-se do pobre artifice que ousava erguer os olhos para uma nobre dama tão superior a elle, como o são aos homens as estrellas que refulgem no céo. A Providencia ou vós dispozestes o contrario, obri gando-me a quebrantar o firme proposito em que estava. Nesta ultima hora, quando se avizinha o momento em que vos deixarei para sempre, escutae-me a triste e breve historia do meu amor. Breve, porque não relatarei os longos tormentos que tenho soffrido desde a primeira vez que vos encontrei no mundo. Era em setembro do anno passado. Depois de uma ausencia de dez annos regressava a Evora. Aquem d'Arrayollos encontrei-vos no meio de luzida cavalgada. Não vi as pessoas que vos acompanhavam, não reparei em mais ninguem senão em vós. Absorto, fascinado, attrahido, parei na estrada e longo tempo vos segui com

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A lua inundava de luz as vastas campinas ao sul da cidade, alvejando as partes mais expostas aos seus raios e escurecendo aquellas d'onde lh'os interceptavam as arvores, os penhascos e as ondulações das terras. Na es

os olhos. Quando me desapparecestes ao longe, the deviam. D'esta sorte esquipado, empunhou foi como se o sol se me escondera no horia sua lança de vinte palmos, montou um casonte. Fez-se noite em minha alma. Um po- vallo marroquino, nascido nas ferteis margens der irresistivel me forçou a voltar atraz a do Tincif, e sahiu da cidade pela porta do buscar a luz que me fugia. Vi os principios Rocio em direcção a Vianna, que naquelle da caçada, e, occultando-me por entre as ar- tempo chamavam de a par d'Alvito. vores, admirei-vos mais de perto sem que desseis pela minha presença. De certa altura, aonde subi, avistei Gonçalo d'Ayola a aprestar a refeição que vos destinava e aos caçadores. Não acharia outro sitio mais conforme ao meu intento. Embrenhei-me, pois, no bosque pro-trada que por ellas se alongava, á maneira de ximo, d'onde, sem que me vissem, poderia contemplar-vos á vontade e por algum tempo. Foi uma feliz inspiração. Nem de outra sorte poderia ter-vos livrado da féra que vos perseguia. Este facto, acabando de inflammar o amor que no coração me despontava, serviu de fundamento á doce esperança de que não seria sempre para vós um desconhecido, desprezado entre o vulgo e como se não existira. Depois em todas as occasiões em que vos vi e vos fallei mais recrescia o meu amor e mais eu redobrava de esforços para o occultar de vós e de todos. Hoje o meu segredo é tambem vosso. Terminou finalmente a lucta que por tanto tempo sustentei, mas seguir-se-lhe-ha outra muito maior, em que terei de supportar novos tormentos e mais crueis.i

D. Beatriz de Portugal, tendo ouvido até este ponto o architecto sem força para de novo o atalhar, comprimiu a coração com uma das mãos e disse-lhe estas palavras menos altivas que lamentosas:

- Mal fizestes, sir. Martim Lourenço. Acabaes de levantar entre nós uma barreira de bronze. Aos olhos da minha familia, do mundo todo, de vós proprio, a neta de D. João o primeiro não deve acceitar o vosso amor! Agora partirei para onde me chama o perigo de vosso irmão.

Adeus! Adeus! Talvez para sempre!

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Tendo sahido dos paços dos duques de Bragança, Martim Lourenço preparou-se á pressa para a viajem que ia emprehender. Vestiu um pellote de bom panno d'amtona, cingiu-o com o boldrié de que pendia a sua espada de Toledo, tão comprida que lhe chegava aos borzeguins atamarados, enfiou ao lado direito a adaga talhante, poz na cabeça um casquete feito de coiro e de laminas d'aço, e involveu-se num amplo bedem ou capa moirisca de escarlatim, que os artifices granadinos lhe tinham trazido d'Africa em signal de gratidão pelo muito que

branca e larga fita, fugia a sombra do cavalleiro, como em tempo de bonança a do navio á flor do oceano. O architecto sentia imperiosa a necessidade de correr. Instigava-o a vontade de chegar quanto antes aonde ia, e mais ainda o desejo de alliviar na rapidez e na agitação da carreira o peso das máguas que o opprimiam. O dialogo que tivera com D. Beatriz de Portugal desvanecera-lhe toda a esperança de tornar a vel-a e a ouvil-a, e de nutrir, ao menos por esta forma, o seu desventurado amor. Ella propria chamara de bronze a barreira que os separava. Martim Lourenço, por sua infelicidade, reconhecia a exactidão rigorosa de taes palavras. Que importava que a Providencia o tivesse egualado a D. Beatriz, dotando-o com a mesma nobreza de alma e escolhendo-o como instrumento para salvar-lhe a vida? A sociedade não olhava senão ao nascimento, e jamais deixaria de os distanciar, vendo nella a descendente de reis, nelle o filho de artifices. Martim Lourenço, embora condemnasse a sociedade, pensava do mesino modo, máo grado seu. Atormentava-o o desengano que recebera da donzella, e todavia julgal-a-hia indigna do seu amor, se de outra sorte houvesse procedido. Ainda mais, elle mesmo chamara sobre si esse desengano, esperando-o, como cousa que necessariamente haveria de seguir-se à sua temeraria confidencia. Achava-se, pois, pela primeira vez na vida subjugado por uma força maior que toda a excepção. Havia um obstaculo a que a mulher a quem amava correspondesse ao seu amor, e esse obstaculo era humanamente invencivel! Podia, sim, luctar comsigo mesmo para repellir o sentimento que o dominava. Nesse intuito fizera já um supremo esforço, revelando-o e sujeitando-se ás consequencias de tal revelação. Mas, depois de consummado o acto de coragem e de abnegação, conhecia que baldados the sahiriam todos os esforços para impôr ao coração a vontade de que não amasse e para expulsar da memoria a imagem querida e deleitosa da filha do bispo D. Affonso.

Ia já em mais de meio o dia seguinte áquelle em que o architecto sahira de Evora, quando chegou ao alto da serra do Caldeirão que aparta as extensas charnecas do Alemtejo das terras onduladas e apraziveis do Algarve.

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E' falsol Exclamou Gonçalo d'Ayola principiando a contestar a accusação do architecto, que não o deixou proseguir.

Deparou-se-lhe ahi um extranho espectaculo. | violencia da jornada, preferindo ficar a pé no No meio da estrada, que interrompe com sua caminho á continuação das dores que vos incôr pardacenta o verde-escuro das estevas e commodavam. estevões, que vegetam pelas argillas e ardosias da montanha, jazia morta uma cavalgadura, e não longe d'ella estava um homem sentado. Este, mal avistou a Martim Lourenço, veiu ao seu encontro, soltando gemidos lamentosos. Era tão comica a sua afflicção, que não pôde aquelle conter uma gargalhada. - Á lá fé! Sår. Martim Lourenço, que vos não ririeis outra vez neste mundo, se...

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Se não tomasse o vosso rir como gracejo de amigo.

-Ora, desculpae-me, por quem sois, sir. Gonçalo d'Ayola. Quando vos vi ao pé d'essa alimaria estendida no chão, não esteve em mim conter-me. Trouxe-me logo á idéa aquelle bravo toiro que matastes na caçada de Arrayollos. Dizei-me, porém, que fazeis aqui, posto em tão singular maneira ?

Com a pressa... Ai!... disse o castelhano interrompendo de espaço a espaço a sua narração com gemidos ao mesmo tempo que apertava com as mãos os quadris. Com a pressa que trazia el-rei a correr sempre a trote rasgado até pelas agruras da serra... Ai!... rebentou-lhe estafada a faca em que vinha. Pobre animal! Não era para taes cavallarias! -E' façanha essa que não esquecerá aos seus chronistas, disse Martim Lourenço.

-De certo, proseguiu Ayola. Mas de quem elles talvez se não lembrarão será da minha pessoa.

Que vale bem a faca baia de sua alteza, accudiu o architecto.

Maldita pressa! Continuou o castelhano. Nem que os moiros fugissem d'Africa! A todo o tempo lá os iria encontrar, sem que... Ai!... sem que se désse tamanha canceira. O meu cavallo era o melhor de quantos vinham; o Alvagir, que de certo conheceis. Tive de o ceder a sua alteza. El-rei queria que eu montasse o alazão do seu pagem. Recusei. Os Ayolas não cavalgam azemolas.

Nem se curvam, como estaes. Parece que dor de levadigas vos aperta!

Gonçalo d'Ayola, querendo tirar a Martim Lourenço toda a suspeita da verdade, tentou aprumar-se. Mas este movimento causou-lhe uma dor tão viva no espinhaço, que não pôde deixar de gritar:

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Ay mi costillas!

Fallemos serio, sir. Gonçalo d'Ayola, disse Martim Lourenço, deixando o tom de gracejo em que até então se exprimira. Não quereis parecer máo cavalleiro, e por isso vos custa a confessar a verdade, que facilmente se descobre. Recusastes o cavallo que el-rei vos offereceu por estardes derreado com a

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Não negueis o que se está vendo tão claro como a agua. Isto vejo eu. Ha, porém, cousas que adivinho. Sei, por exemplo, que andaes tramando contra a vida de D. Francisco de Portugal.

Gonçalo d'Ayola soltou um grito de terror, e, como se sentisse oscillar a terra debaixo dos pés, sentou-se cambaleando no comoro d'onde se levantara. Quiz fallar e sómente pôde dizer com voz abafada:

-Homem do diabo! Quereis perder-me com uma infame calumnia!

Não continueis a mentir! disse Martim Lourenço, apontando a lança ao peito de Gonçalo d'Ayola, que tremia como varas verdes. Se não responderdes com verdade ás minhas perguntas, atravessar-vos-hei sem compaixão. Livrarei assim o mundo d'um reptil miseravel, que não tem de homem senão a figura. Quem é que tendes encarregado em Africa de assassinar a D. Francisco de Portugal?

Não sei nada. Levantaram-me um falso testimunho!

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- Dizei a verdade! Gritou o architecto, ferindo levemente com a ponta da lança ao castelhano, a quem a dor arrancou um gemido maior que os que já tinha soltado.

Compadecei-vos de mim, sur. Martim Lourenço! Não me tireis a vida. Dir-vos-hei tudo. O homem por quem perguntaes é conhecido pela alcunha de Patranhas.

E o seu verdadeiro nome qual é? Ignoro-o. Acreditae-me por quem sois. Martim Lourenço desejando ter a prova de que d'esta vez o castelhano lhe dizia a verdade, perguntou:

Quem é o frade que foi a Africa tractar d'este negocio?

-Ai de mim! Sabeis tudo... Não reveleis isto a ninguem... Por Deus vol-o peço. Prometto e juro desfazer todo este maldito plano. O frade por quem perguntaes chama-se Fr. Julião, e é do convento dos franciscanos de Evora.

- Deixo-vos a vida, sob condição de que haveis de pôr todos os esforços para impedir o crime. Se não cumprirdes a vossa promessa, el-rei saberá tudo, e, se não fizer justiça, fal-a-hei eu por minhas mãos. Sabeis já como fere a ponta d'esta lança.

Martim Lourenço proseguiu no caminho de Tavira e Gonçalo d'Ayola ficou-se a cobril-o de pragas e a conjecturar se sim ou não seria verdade ter o architecto algum tenebroso pacto com o demonio. (Continúa)

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IMPRENSA DA UNIVERSIDADE

A. FILIPPE SIMÕES.

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NECROLOGIA ACADEMICA

Francisco Antonio Alves

Com maus agouros alvoreceu o anno de 1873, roçando pela face de Coimbra e da Universidade como um sopro lethal. Em cada dia que vai desdobrando na teia incessante do tempo leva inscripto um epitaphio, e de involta com elle amargas saudades do passado e honrosas memorias para o futuro. Carregado de lutos sobresahe qual monumento funebre no campo da sciencia, tendo ceifado implacavel preciosas vidas de alguns de seus cultores.

a morte memoria para esquecidos, eschola da sabedoria, lição, para todos. A sua idéa assoma ao espirito tremenda sempre e solemne; e quando o bronze troa o seu signal, a carne estremece involuntaria com a lembrança do seu futuro pavoroso. Voa-nos a imaginação a perscrutar essa senda incognita, e lá nos enxerga no extremo do caminho como estatua cahida do pedestal, mutilada pelo raio.

Folgamos por vezes descuidados no bulicio da vida, esquecendo que no emtanto descosem vermes as carnes dos que foram nossos, ou que o vento dispersa nas rajadas os ultimos atomos da sua decomposição. Enfreia-nos a reflexão as velleidades mundanas, quando das rosas da existencia sentimos murchadas as folhas e sanguentos os espinhos.

Commemorar porém o fallecimento dos nossos sabios é sobre tudo doloroso. Mais do que nunca necessita hoje a patria da intelligencia de seus filhos, e o occaso prematuro d'um d'elles a sepulta em noite de profundo desalento. Do concurso de todos se forma a cadeia da sua segurança; quebrado um elo, resente-se a desditosa, e chora, Niobe amargurada, os prantos da soledade materna.

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O Doutor Francisco Antonio Alves, fallecido no dia 13 do corrente mez de janeiro, era lente cathedratico da faculdade de Medicina e socio effectivo do Instituto, collaborador distinctissimo d'este jornal e um dos seus antigos redactores. Solvemos uma divida de gratidão pelos seus serviços e prestamos homenagem posthuma aos seus relevantes merecimentos, estampando aqui o seu nome em commemoração solemne d'uma vida laboriosa e util para a nossa sociedade.

VOL. XVI.

N. 10 *

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