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LXXXIV.

Assi dizendo, os ventos que lutavam
Como touros indómitos bramando,
Mais e mais a tormenta accrescentavam,
Pela miuda enxarcia assoviando:
Relampagos medonhos não cessavam,
Feros trovões, que véem representando
Cahir o ceo dos eixos sôbre a terra,
Comsigo os elementos terem guerra.

LXXXV.

Mas ja a amorosa estrella scintillav
Diante do sol claro no horizonte,
Messageira do dia, e visitava

A terra, e o largo mar, com leda fronte.
A deusa, que nos ceos a governava,
De quem foge o ensifero Orionte,

Tanto que o mar, e a cara armada vira,
Tocada juncto foi de mêdo, e de ira.

LXXXVI.

«Estas obras de Baccho são por certo,
(Disse) mas não será que avante leve
Tam damnada tenção; que descoberto
Me será sempre o mal, a que se atreve: »
Isto dizendo, desce ao mar aberto,
No caminho gastando espaço breve,
Em quanto manda ás nymphas amorosas
Grinaldas nas cabeças pôr de rosas.

LXXXVII.

Grinaldas manda pôr de varias cores
Sobre cabellos louros á perfia.

Quem não dirá, que nascem roxas flores
Sobre ouro natural, que amor enfia?
Abrandar determina per amores

Dos ventos a nojosa companhia,

Mostrando-lhe as amadas nymphas bellas, Que mais fermosas vinham que as estrellas.

LXXXVIII.

Assi foi; porque tanto que chegaram
A' vista d' ellas, logo lhe fallecem
As forças, com que d'antes pelejaram,
E ja como rendidos lhe obedecem.
Os pés, e mãos parece que lhe ataram
Os cabellos, que os raios escurecem.
A Bóreas, que do peito mais queria,
Assi disse a bellissima Orithia:

LXXXIX.

« Não creias, fero Bóreas, que te creio
Que me tiveste nunca amor constante;
Que brandura é de amor mais certo àrreio,
E não convem furor a firme amante:
Se ja não pões a tanta insania freio,
Não esperes de mi d' aqui em diante,
Que possa mais amar-te, mas temerte;
Que amor comtigo em mêdo se converte. »

XC.

Assi mesmo a fermosa Galatea
Dizia ao fero Noto; «que bem sabe
Que dias ha, que em vêl-a se recrea,
E bem crê que com elle tudo acabe. »
Não sabe o bravo tanto bem se o crea;
Que o coração no peito lhe não cabe :
De contente de ver que a dama o manda,
Pouco cuida que faz, se logo abranda.

XCI.

D'esta maneira as outras amansavam
Subitamente os outros amadores;
E logo á linda Venus se entregavam,
Amansadas as iras, e os furores.
Ella lhe prometteu, vendo que amavam,
Sempiterno favor em seus amores,
Nas bellas mãos tomando-lhe homenagem
De lhe serem leaes esta viagem.

XCII.

Ja a manhã clara dava nos outeiros,
Per onde o Ganges murmurando soa,
Quando da celsa gávea os marinheiros
Enxergaram terra alta pela proa.
Ja fóra de tormenta, e dos primeiros
Mares, o temor vão do peito voa ;
Disse alegre o piloto melindano:

« Terra é de Calecut, se não me engano.

XCIII.

« Esta é por certo a terra, que buscais
Da verdadeira India, que apparece;
E, se do mundo mais não desejais,
Vosso trabalho longo aqui fenece. »>
Sofrer aqui não pôde o Gama mais
De ledo em ver que a terra se conhece;
Os giolhos no chão, as mãos ao ceo,
A mercê grande a Deus agradeceo.

XCIV.

As graças a Deus dava, e razão tinha,
Que não somente a terra lhe mostrava,
Que com tanto temor buscando vinha,
Por quem tanto trabalho exp'rimentava ;
Mas via-se livrado tam asinha

Da morte, que no mar lhe apparelhava
O vento duro, férvido e medonho;
Como quem despertou de horrendo sonho.

XCV.

Per meio d' estes hórridos perigos,
D'estes trabalhos graves, e temores,
Alcançam, os que são de fama amigos,
As honras immortaes, e graus maiores:
Não encostados sempre nos antigos
Troncos nobres de seus antecessores;
Não nos leitos dourados entre os finos
Animaes de Moscóvia zebellinos:

XCVI.

Não co' os manjares novos e exquisitos,
Não co' os passeios molles e ociosos,
Não co' os varios deleites e infinitos,
Que afeminam os peitos generosos;
Não co'os nunca vencidos appetitos,
Que a fortuna tem sempre tam mimosos,
Que não sofre a nenhum, que o passo mude
Pera alguma obra heroica de virtude:

XCVII.

Mas com buscar co' o seu forçoso braço
As honras, que elle chame proprias suas ;
Vigiando, e vestindo o forjado aço,
Sofrendo tempestades, e ondas cruas;
Vencendo os torpes frios no regaço
Do Sul, e regiões de abrigo nuas;
Engulindo o corrupto mantimento,
Temperado c' um árduo sofrimento:

XCVIII.

E com forçar o rosto, que se enfia,
A parecer seguro, ledo, inteiro

Pera o pelouro ardente, que assovia,
E leva a perna ou braço ao companheiro.
D'est'arte o peito um callo honroso cria,
Desprezador das honras, e dinheiro;
Das honras, e dinheiro, que a ventura
Forjou, e não virtude justa e dura.

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