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perialismo, em cujo berço nascêra o sol da Renascença e em cujo regaço polluido elle se afundava agora. O imperio fazia-se tyrannia; o racionalismo piedoso transformava-se em lamismo papista. Assim as idéas se corrompem em contacto com a realidade.

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O imperialismo camoneano é, porém, tão lidimoainda como a sua religião. Se nas turbas não vê mais do que co soberbo povo duro», 1 isto é, um elemento ou um material para a construcção artistica do estado; se a vontade dos reis, que são a chave da abobada social, ha de ser absoluta, nem «póde ser por outrem derogada»; 2 se elles são supremos senhores dos seus subditos; 3 se os vassallos. são membros de um corpo de que o rei é cabeça: a verdade, porém, é que tudo isso presuppõe no rei qualidades eminentes.

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E' o que ao poeta diz a historia patria, porque em Portugal

o reino, de altivo e costumado
A senhores em tudo soberanos,
A rei não obedece nem consente

Que não for mais que todos excellente. 5

Monarchia e religião, pois, tudo se depura no cadinho da poesia á chamma intensa da nobreza e da lealdade lusitana. O cerebro ingente de Camões, em que a luz do heroismo nacional vem reflectirse, fundindo-se como n'uma lente, despede o raio e incendeia Portugal na ambição ultima da sua existencia. Felizes são os povos que morrem como o sol, despedindo clarões!

1 C. II, 79. 5 C. III, 93.

2 C. VIII, 72. — 3 C. 1, 10. —4 C. 11, 81.

III

Desenrolou-se perante nossos olhos o espectaculo das opiniões e das façanhas da Renascença camoneana. Vimos o genio humano e a sua força creadora na efflorescencia plena das idéas de uma época: resta vêr agora as raizes que essa vegetação tem no solo profundo dos pensamentos racio

naes.

Vimos o imperialismo nascido da idéa de uma auctoridade positiva e immanente, que é a propria alma da monarchia, ou principado, concebido artisticamente, de uma só peça. Tem por fim a utilidade dos povos; tem por bussola o conhecimento das cousas; tem por definidores Erasmo, Bodin, Saavedra, de que Machiavel é apenas a aberração convertida em doutrina. Differe visceralmente da concepção anarchica, anti-esthetica, negativa sómente e inorganica do communalismo republicano, parallelo á confissão de Augsburgo. João de Leyde é a aberração correspondente á de Machiavel no polo opposto. Um exagerou a auctoridade ao ponto de a tornar superior á moral, levantando absoluto o principio da razão d'Estado; outro proclamou a anarchia individualista como expressão verdadeira do communalismo delirante.

Na religião succede parallelamente o mesmo. Após o momento de liberdade luminosa proveniente da resurreição da Antiguidade, quando se espera e se crê no estabelecimento definitivo da paz e felicidade das consciencias, vem a maior crise dos tempos modernos. E' a Reforma com os seus

trinta annos de guerras. E' o protestantismo: quer dizer, o individualismo e a negação da auctoridade, o communalismo e a negação unitaria ou artistica do estado, transferidos para a esphera religiosa.

Escusado será notar mais uma vez como esta crise, scindindo a Europa christan, lançou cada metade d'ella, pela violencia, no caminho da reacção, tirando-se as ultimas consequencias, exagerando-se, até ao ponto de se perverterem, a auctoridade no Estado e a disciplina na Egreja. A Egreja, velha republica de imitação romana, onde o principio representativo funccionava organica e fecundamente, imperialisou-se á imagem da sociedade politica, e seguindo na esteira dos imperios, ossificou. Loyola foi o seu Machiavel.

D'este modo, o Meio-dia europeu, catholico, tombou, no seculo XVII e no seculo xviii, em uma decadencia filha do seu bater d'azas para o ideal de harmonia humana que entrevira no principio do seculo xvi, e sob cujo impulso construira no decurso de todo elle os alicerces dos tempos de agora. Atravez das sombras da decadencia luzem as auroras do dia futuro, e entre os gemidos de afflicção ouvem-se notas crystallinas de canticos dilatados.

E' que as proprias aberrações do imperialismo e do jesuitismo encerram uma semente incontestavel de verdade absoluta, que se não encontra no individualismo anarchico e negativo dos protestantes. Esse pensamento de uma liberdade que não sáe da esphera propriamente moral, contém apenas, como expressão social pratica, a idéa de utilidade: foi o que os doutores vieram dizer-nos no seculo XVIII e o que os povos já praticavam antes, quando no meio dos delirios de exaltação religiosa o alle

mão se não esquecia de saquear as egrejas, e quando as communas hollandezas e inglezas não cessavam de armar piratas para saquear os nossos estabelecimentos ultramarinos.

Outra, mais nobre, mais pura, é a semente que germina no espirito meridional, feito de abnegação e sacrificio heroico. Os homens, como individuos, votam-se ao serviço da sociedade. Abdicam no altar da patria e da humanidade. São apostolos e são soldados. O Estado apparece-lhes como um templo e a Egreja como um sacrario. Domina-os e impelle-os, em vez do principio egoista da utilidade, o principio esthetico da ordem. Só se sentem grandes no seio de uma sociedade bella. Como as plantas bracejando para o céo, vivem principalmente do ar saturado de idéas. O mundo não se limita pelo circulo da sua casa: abrange n'um vinculo de amor apaixonado todos os homens, o Universo inteiro.

Por isso nos poetas, e acima de todos em Camões, o homem interior desapparece quasi. De que vale, o que é, e que importa elle, perante a grandeza eminentemente bella da sociedade e do mundo? Este poder de racionalismo e abstracção que, desengastando o animal-homem do ninho primitivo do egoismo, lhe dá azas para voar, e tambem para caír-feliz desgraça da sorte!-é o que constitue a coroa gloriosa das nações meridionaes, e o que illumina de clarões esplendidos a nossa Peninsula, agora mesmo, quando a vêmos ir descendo na ladeira da desgraça entre um absolutismo extenuante e um catholicismo devorador.

Esse poder de abstracção e essa illuminação idealista são as fontes de onde brota a insaciavel sêde de experiencia, de saber, de acção, que observámos em Camões, e que lhe dão a segunda-vista

com que elle transfigura o mundo n'uma visão animada, dando voz aos montes e aos rios, ao mar immenso paixões, e gemidos de desespero aos promontorios ancorados sobre os oceanos.

Tudo vive e sente, porque o espirito divino não escolheu egoistamente, para se revelar, a consciencia fechada do homem, segundo quer o protestante; mas pelo contrario refulge no Universo inteiro como

Hum saber infinito, incomprehensibil
Huma verdade que nas cousas anda. 1

Esta divinisação do Universo, intuição dynamista, para fallarmos na linguagem scientifica de hoje, é a primeira origem do pensamento que, vendo o mundo como uma intelligencia, não póde deivar de vêr o Estado como um producto d'arte e a Egreja como a expressão religiosa da sociedade. Que é o mundo para o protestante? O inimigo, como na Edade-média; a antithese da these verdadeira e absoluta, supposta na liberdade da sua consciencia. Para o meridional, a cuja vista as cousas se transfiguram, o mundo é a grande obra d'arte da força creadora:

Ves aqui a grande machina do mundo,
Eterea e elemental, que fabricada
Assi foy do saber alto e profundo,
Que he sem principio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superficia tão limada,

He Deos; mas o que he Deos ningue o entende
Que a tanto o engenho humano não se estêde. 2

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