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vota necessariamente a nação aos destinos mariti

mos.

No seculo XVI, já as causas efficientes do movimento de desagregação politica posterior a Carlos Magno na Europa transpyrenaica, e aos arabes na Hespanha, estavam dissipadas; e já o agrupamento das nacionalidades estava adiantado, embora só viesse a consummar-se no seculo XIX. Dos pedaços retalhados do manto de Carlos Magno tinha-se formado completamente a França dos gaulezes, incompletamente a Allemanha; e a Italia, se de facto era o pomo de discordia d'esses dous povos, cadaver decapitado do velho imperio dissolvido, vivia já como nação moderna no espirito de todos os seus grandes homens com Machiavel á frente. Os saxões nas suas ilhas tinham conquistado a unidade, e os hespanhoes, sob Fernando e Isabel, appareciam tambem unidos, com a excepção singular de Portugal. Porque foi que este pequeno povo resistiu á attracção?

A Hespanha representa sobre o mappa uma figura quasi quadrangular: duas das suas faces banha-as o Mediterraneo, duas o Atlantico. As primeiras são as de sul e de leste, as segundas as do norte e de oeste: ao longo d'esta ultima faixa, estendido sobre a praia, é que assentou Portugal. Uma tal situação geographica impunha desde logo a um povo, como condição de independencia, o caracter maritimo; e maritimo, não á maneira da Grecia, em que o mar, insinuando-se por entre as ilhas, bahias, golphos e canaes, produz a cabotagem: mas sim maritimo de um modo largamente aventuroso, maritimo da grande navegação, porque a vastidão immensa do Oceano desenrolava-se, tentadora e enygmatica, deante da estreita faixa de terra em que

os portuguezes se achavam comprimidos pela Hespanha.

Esta circumstancia que em todo o caso teria feito dos hespanhoes occidentaes, ainda quando se não chamassem portuguezes, os descobridores do seculo XVI, veio, porém, substituir para a nossa autonomia nacional o motivo que primeiro estivera na idéa particularista e separatista da Galliza, sobre a qual os Affonsos procuraram assentar a hegemonia, quando a expansão austral do reino e o seu destino maritimo se não tinham definido ainda de um modo absoluto. Consummado este destino durante a segunda dynastia, a nação portugueza, elaborada como pensamento na consciencia dos seus homens, affirmava-se como acto na politica ultramarina. N'um sentido deixava de ser hespanhola, porque o seu pensamento era romano ou cosmopolita; e por outro lado a terra que tinha na Hespanha, sacrificada ao imperio alongado pelos mares, não era mais do que a caput ou capitolio de um povo, cujo dominio abrangia o mundo, e cujo pensamento abstracto dominava a esphera natural das cousas.

O momento culminante, como revelação, é quando D. João 1 crava o pendão das quinas nas muralhas de Ceutaessa Carthago portugueza! O mouro foi para nós como o punico para o romano. As guerras da Barberia são tambem as nossas guerras d'Africa, e Nunalvares o Scipião da nova Roma. Depois de Zama, depois de Ceuta, o portuguez e o romano, com a consciencia completa da sua missão, attingem a plenitude do genio e do imperio e encontram, ainda parallelamente, um Virgilio e um Camões para cantar a magestade do povo e a grandeza da idéa, quando ambos, percorrido o cyclo da existencia, vão declinando para o occaso,

afogados na sombra crepuscular da tristeza fatal das cousas, essa irremediavel lei da morte inherente a tudo.

Desde que Portugal venceu a crise de 1383, impondo o seu querer opposto aos elementos naturaes da historia; desde que as guerras do tempo de D. Fernando, tiveram Aljubarrota como epilogo, e Ceuta por inicio de uma éra nova, o periodo antigo da tendencia absorvente da Hespanha concluia, porque deixavamos de girar na orbita do systema politico peninsular. O caracter proprio da nação portugueza estava definido.

Esse caracter, reproduzindo o romano, e similhante ao de Tyro e Carthago, de que Roma tambem herdára a navegação e o commercio maritimo, define-se como um imperio, dominador de povos estranhos. Principiando por avassallar Marrocos, descendo pela Africa inhospita e quasi selvagem, quando chegámos á India, fizemos o que os romanos fizeram no Oriente europeu. Se D. Francisco d'Almeida se satisfazia com o plano phenicio ou carthaginez da occupação dos pontos estrategicos littoraes e com o dominio nos mares, Affonso d'Albuquerque, o homem que encarnou a energia e o pensamento portuguez, tinha o plano romano da positiva constituição de provincias, subjugando os indigenas com o terror, sim, mas tambem com a assimilação protectora.

Portugal, porém, cujo instincto descobridor e cujo tacto colonisador ficaram demonstrados nas ilhas Atlanticas e no Brazil, provou não ter no seu temperamento recursos para exercer cabalmente o imperio, a que o levava a deducção logica da sua historia e o pensamento claro dos seus homens. A missão e o officio do romano, regere populos, parece

que não se coadunavam com o temperamento ingenito do portuguez, em que a curiosidade celtica, o illuminismo semita e a cobiça carthagineza, abafaram a efflorescencia ideal da abstracção politica. O imperio nunca passou de um esboço. O plano nunca chegou a ter execução firme. Em via de construcção ainda, principiou logo a derrocar-se. Descobriu-se a India em 1498 e já no tempo de Camões, com menos de um seculo! em 1570, era uma Babylonia. Já no seu tempo as esperanças da patria se volviam de novo para Africa, desenganadas das illusões orientaes. O imperio esvaía-se nos fumos de que Albuquerque fallava.

Dissipados esses fumos, que se viu? A cruel miseria em que tudo se perdêra - até a propria independencia, que durante seis seculos fôra o trabalho por vezes quasi milagroso d'este pequeno Hercules occidental. E' por isto que os Lusiadas, escriptos em lettras de ouro, sobre a candura de um marmore, são o epitaphio de Portugal e o Testamento de um povo. Como Israel, nos seus captiveiros successivos, o portuguez, abraçado à sua biblia e enlevado no sonho messianico do sebastianismo, amassado com lagrimas, balbuciará as estrophes de Camões sempre que vir apontar no céo uma aurora fugaz de renascimento, e sempre que contemple melancolicamente o crepusculo saudoso do seu passado per

INDICE

PROLOGO
Cap.

I- - As EPOPEIAS .

V

1

I. A intuição symbolica, faculdade creadora da arte. A arte e o instincto. Artistas e heroes. Explosão da Renascença depois da phantasmagoria medieval. O homem inoderno. Evolução do instincto artistico: sua constitucionalidade no espirito humano (1-7).

O amor revelando a verdade natural. A poesia prophetica. Espiritualisação primitiva das forças naturaes: a Antiguidade pagan. Reacção da Edade média. Novas fórmas de arte a pintura, a musica. Caracteres da Renascença. Synthese da sciencia e da arte, ou da philosophia e da piedade (7-17).

II. Preeminencia da poesia como arte. Successão das fórmas artisticas: a esculptura, a pintura, a musica. Constancia da poesia. A arte contemporanea (17-23).

A esperança e a fé, na Renascença, são a causa das epopeias. Caracteres da poesia epica. Filiação dos povos europeus. Logar de Portugal. Caracteres da epopeia portugueza (23 33).

III. A sensibilidade, estado particular do poeta. Infelicidade constitucional dos poetas e dos heroes. A sensibilidade aferida em Camões pela sua concepção da mulher. Momentos successivos da definição: Venus, a rainha Maria e Ignez de Castro; a amante, a esposa, e a martyr (34-46). Meiguice e caridade portugueza, em Camões. Melancolia e Terror. Transfiguração da natureza. Elementos

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